DIDEROT

OBJECÇÕES AOS ARGUMENTOS DUM CRENTE(*)

(*) As passagens que reunimos com este título são extractos da obra de Georges May: Francois Hemsterhuis, Letter sul L`Homme et ses rapports avec commentaire, inédito de Diderot, P.U.F. (1964), pp. 216-217, 218-219, 360-363, 443-445 e 447. As passagens em itálico são citações de Hemsterhuis. (Roland Desné)

"...Para formar este globo ocular foi necessário uma geometria tão prodigiosamente transcendente e profunda, que ultrapassa infinitamente todo o esforço do espirito humano..."

Não é em consequência destas leis que o olho existe, mas é por ser olho que corresponde a essas leis. Se lhes não correspondesse e não fosse o que é, seria outra coisa com que também ficaria satisfeito, pois tratar-se-ia nesse caso de uma outra espécie de ser ou animal. Se tal órgão fosse particularmente necessário à sua existência, e lhe faltasse, não poderia continuar a existir.

A natureza só permite que subsistam os apologistas; extermina todos os censores. E fá-lo mais ou menos rapidamente; e isso tanto pelos vícios como pelas deficiências de organização.

O invejoso é um monstro que não poderia persistir; o voluptuoso outro monstro transitório, se esses vícios forem contrários à organização.

"Esta prodigiosa modificação() deve ter ocorrido no primeiro embrião, ou no primeiro indivíduo..." (Diderot propõe ao seu correspondente holandês substituir esta palavra imprópria por "disposição" "arranjo". Continua a tratar-se da estrutura do olho.)

Não sei o que seja o primeiro indivíduo. Nada compreendo acerca do primeiro embrião; e muito menos de um embrião que contem um olho completo. A geração animal não se processou assim. E também não sei o que era o animal há algumas centenas de biliões de anos, como não sei aquilo em que se há-de tornar dentro de outras centenas de biliões de anos.

Se este olho, esta máquina admirável, tivesse sido feita de uma só vez, o seu mecanismo seria ainda mil vezes mais surpreendente do que o absurdo de admitir a matéria produzida por um agente imaterial.

Se aquilo a que se chama a essência divina se combina com a essência material, Deus e a matéria formam um todo de que eu sou uma parte.

Se a heterogenidade não comporta qualquer combinação, se as essências são incompatíveis, não há nem criador nem formador.

"...Os nossos deveres para com Deus consistem... 1.º No culto que deriva da admiração e do amor que necessariamente se sucedem à contemplação reflectida, ou então da sensação moral da presença de todo esse Ser imenso."

Não podemos admirar aquilo de que não conhecemos, nem o conjunto, nem as partes, nem o fim.

Não devemos admirar o que não custou ao seu autor nem se quer um sopro.

Se me vir levantar um rochedo com uma enorme alavanca, não ficará admirado, principalmente se a invenção e construção dessa alavanca não me tiver custado nada. Não merecerei a sua admiração se fizer saltar uma cidade por meio de pólvora. E ainda me admiraria menos se necessariamente produzisse todos esses efeitos, em virtude de uma consequência forçada da minha natureza.

Admiro um homem porque sou um homem. Se um homem for capaz de transportar o fardo duma mula fico admirado porque ele não é uma mula. Mas a mula não me causa espanto.

Quanto ao amor, é referido ao valor da existência de cada indivíduo. O mau que goza uma existência feliz pode amá-la. Mas não percebe o amor de um inocente que sofre e do bom acabrunhado pela desgraça.

O tirano que nasce sem sensibilidade, receado, venerado, adorado, exprimindo à sua vontade toda a espécie de desejos que mal surgem são logo satisfeitos, passando bem sem remorso nem receio primeiro porque é intrépido, segundo porque o órgão moral não existe nele, e não o apoquentam nem doenças morais nem físicas, esse sim pode amá-la. Estou de acordo. Este nosso mundo parece ter sido criado para ele.

Aliás que se importa Deus com o amor e a admiração? Para que precisa delas? Que motivo tem para as exigir? Quantas vezes a ignorância não as tornou mais ridículas ou tolas? Qual a vantagem de um acto estéril, tanto para quem o produz como para aquele aquém se destina? A noção de dever é sempre indivisível do de felicidade. E que felicidade pode resultar duma acção perfeitamente estéril? Quando a afirmo indivisível da de felicidade, entendo felicidade referida a qualquer ser que seja objecto e termo dela.

Se as grandes acções dos homens que já não existem fossem absolutamente inimitáveis e por consequência impraticáveis pelos homens que são ou hão-de ser, transmudariam-se em contos de fadas que só acordariam em nós admiração pueril, semelhante ao terror que uma boa velhinha provoca nas crianças, quando lhes fala de feitiçarias, e lhes faz ressoar aos ouvidos o ruído de invisíveis cadeias, etc.....

"...Como aquele que puder tornar ridículo o seu adversário terá no nosso tempo muito mais vantagens do que aquele que só souber enegrecê-lo; daí resultará (Os pretendidos filósofos obterem) a provável superioridade: o que oferece o aspecto feio e triste dum conjunto de homens, onde já não haverá nem costumes nem religião a menos que se consiga(...) tornar as verdades filosóficas tão palpáveis e tão populares que os miseráveis sofismas (dos pretendidos filósofos) nem convençam crianças."

Confesso-lhe que penso não ser isso difícil aos filósofos se acaso pretenderem ocupar-se a sério do assunto, e se se lhes permitir a mesma liberdade de escrever que se concede aos seus adversários.

E, senhor, não pense que o ridículo é assim tão temível; acaba sempre por cair sobre quem não tem razão. O ponto importante é tê-la.

O opúsculo intitulado Bom Senso (Trata-se do livro de d`Holbach) causará mais mal ou mais bem do que todos os gracejos de Voltaire.

Mas não acha estranho que a observação duma criança se torne tantas vezes embaraçosa para o mais hábil dos homens, e que sejam precisos vários volumes para responder a quatro palavras? "Se tem de haver mal no mundo, se um só inocente pode sofrer, e um mau prosperar, então mais valia não o Ter criado."

Aqui está o que diria uma criança.

E um Leibniz vê-se obrigado a escrever volumes para resolver uma dificuldade que todo o mundo conhece, volumes esses que quase ninguém entende, e baseados em ideias tais como a mónada, a harmonia preestabelecida e outras visões.

Uma criança diz: "Em Deus clemência e justiça são incompatíveis; e um perspicaz doutor terá muita dificuldade em as conciliar.

Uma criança diz: "Se Deus está em toda a parte é extensão; se é extensão, tem largura comprimento e altura; portanto é matéria". E os mais profundos metafísicos ainda não resolveram esta dificuldade. E como este caso mil outros.

Parece-me que quando se encontram tantas insuficiências seria lícito esperar indulgência para os adversários.

Sem duvida que devemos detestar os destruidores da moral, mas esta é completamente independente das opiniões religiosas. Os primeiros gregos veneraram alguns celerados como divindades, e não deixaram de ser pessoas honestas. O mesmo ocorreu com os primeiros Romanos.

Mas tenho de acabar; o que lhe estou a dizer sabe-o também como eu. Se o problema fosse simples como pretende provar a sua obra seria mais fácil de perceber. Apenas os seus adversários, bastante versados em tais matérias, poderão lê-la correctamente. O que fica demonstrado com os seus improfícuos esforços e todas as objecções levantadas pela obra em questão.

Comentário Inédito da Carta sobre o homem (de Hemsterhuis) 1773-1774. Ed. G. May,

Diderot (1713-1784) - Este comentário foi encontrado recentemente nos Estados Unidos por Georges May, professor na Universidade de Yale, dirigido ao filósofo holandês adversário do materialismo e do ateísmo, Hemsterhuis (1721-1790).