Tomaz da Fonseca - SERMÕES DA MONTANHA

SERMÕES DA MONTANHA

Excertos

"... Sempre que uma grande e luminosa descoberta fornece benefícios aos mortais, facilitando e adoçando a vida, logo surgem os padres nos púlpitos, condenando-a como obra contra Deus e contra a fé de nossos pais.

Foi deste modo que perseguiram, sacrificaram e desonraram (quantos morreram cobertos de ignomínia e de miséria irresgatável!) Copérnico, que descobrira o movimento da Terra; Newton e La Place, que ensinaram o sistema do mundo; Franklin e Dawis, que abrigaram do raio e das explosões do grisu; Galvani e Volta, que revelaram as correntes eléctricas, hoje dominadoras do mundo; Wheratstone e Morse, que, por meio do telégrafo, fizeram voar o pensamento com a velocidade dum raio... Perseguiram Bacon e Descartes, ultrajaram Look e Espinosa. Le Bon, que iluminou as cidades a gás, foi obrigado a emigrar; Galileu, que nos legou o termómetro, a balança hidrostática e nos revelou o movimento da Terra, foi agarrado e torturado pelo dedo de Deus, nesse tempo ao serviço da Inquisição; Rousseau, que nos ensinou a arte de educar as crianças, foi um dos homens mais perseguido e mais repetidas vezes condenado pela igreja.

Filhos do diabo eram também Quinguet, autor dos candeeiros; Mariotte, dos manómetros; Paulino de Campânia, dos sinos; Finiguerra, da gravura a buril; Dombarle, da charrua; Senefelder, da litografia. Filhos do Diabo foram ainda Pironet, que descobriu a bomba; Sauvage, a hélice; Margraf, o açúcar de beterraba; Fresman, a borracha; Cromston, a fiação mecânica; Robert, a máquina de fabricar papel; Filipps, o sino de mergulhar; Fresnel, os faróis das costas; Deville, o alumínio; Soubeiram, o clorofórmio; Deschamps, a lâmpada económica; Vaucauson, os autómatos; Filippe Chiese, as diligências; Otho Guericke as máquinas pneumáticas; Fischer, as bombas de incêndio; Montgolfier, o carneiro hidráulico; E. Adour, o alambique, Gay Lussac, o alcoómetro; Lee, as pontes pênsis; Baptista Chambrai, a cambraia, e os esposos Curie, o radium. Nenhum deles teve jamais as atenções da Igreja para outro fim que não fosse a perseguição, a calúnia, o extermínio.

Lincoln, que pacificou a América, e Garibaldi, que libertou a Itália, eram dois filhos do Inferno, às ordens de Satanás"...

Montalembert e Lamenais, que defenderam a liberdade da Ciência e a supremacia do livre-exame, foram anatematizados pelo Papa, como inimigos da Verdade. Entre nós: quantas vítimas inocentes, sacrificadas em nome desse Deus? Lembro apenas duas: Damião de Gois, glória de Portugal, condenado pela Inquisição a apodrecer no fundo de um cárcere abominável; e Alves Martins, bispo de Viseu e ministro de Estado, que dava tudo aos pobres, que não tinha guarda-roupa nem cruz de brilhantes, morreu amaldiçoado pela Igreja, chegando os seus próprios colegas a negar-lhe uma missa, a missa fúnebre, a missa que se diz a toda a gente!

À vista destes factos, quais são as obras de Deus? Quais os seus homens? Quem manda ele para nos dirigir e resgatar? Inácio de Loiola, que ensinou à Humanidade a arte de sofrer e ser cadáver; Torquemada, que inaugurou a Inquisição da Espanha, encarcerando, degolando e queimando muitos milhares de cidadãos prestantes; Carlos 9º e Catarina de Médicis, que, em uma noite apenas, cobriram de sangue as ruas de Paris, matando e afogando cegamente o seu povo indefeso; Pedro, o Eremita, e Urbano 2º, os fautores das Cruzadas, onde morreu, com fomes, febres e guerras inúteis, a flor da mocidade de toda a Europa; o patriarca S. Domingos, que fundou o mais tenebroso e sanguinário dos tribunais - a Inquisição -; Simão de Monfort, que massacrou os albigenses, gente simples e de bons costumes que havia numa província ao sul da França; e o abade Citeaux, que nessa guerra de extermínio mandava matar indistintamente velhos e moços, mulheres e crianças, culpados e inocentes, alegando que Deus saberia distinguir os ímpios dos católicos, chegando, desse modo, e num só dia a massacrar 60.000!... Três pessoas distintas, mas todas elas realizando o pensamento e a obra do deus Verdadeiro.

Os soldados do general russo Anhalt, quando atiravam ao ar com as crianças turcas, aparando-as em seguida na ponta das lanças, faziam-no em nome de Deus, entre orações e missas. Igual procedimento tinham os companheiros de Fernão Mendes Pinto, quando, no Oriente, queimavam, gotejando sangue no meio dos incêndios.

Filhos de Deus foram também o frade Jacques Clement e Ravaillac, que apunhalaram respectivamente os reis de França Henrique 3º e 4º, este último o bom, o justiceiro, o laborioso e grande Henrique. Filhos de Deus eram os papas Sérgio 3º, que teve de Marosia um filho adulterino, mais tarde o papa João 11º, que, tendo roubado em Nápoles uma mulher ilustre, viveu depois com ela, publicamente amancebado; Alexandre 6º, que teve de Vanosia, dama romana, quatro filhos e uma filha, e dava banquetes às prostitutas e envenenava os seus inimigos; Paulo 3º que passava o melhor do seu tempo a gerar filhos, que depois elevava a cardeais; Júlio 3º que tinha por amante um lindo moço, de que fez um pequeno cardeal; João 22º, que, mediante 80 soldos pagos à Santa Sé, consentia que os leigos dormissem com as mães e irmãs, e por pouco mais os pais com as filhas; que permitia aos diáconos o assassínio com as condições de darem 240 soldos; aos bispos e aos abades um pouco mais abonados, o direito de apunhalarem o semelhante, se dessem 300 libras."

"Pois são factos há muito averiguados e bem conhecidos dos que estudam e lêem. Mas se ainda fosse só isso!... Que pensaríeis então se vos dissesse, por exemplo, que só uma das obras de Deus, as tais cruzadas à Terra Santa, custaram inutilmente a vida a dois milhões de crentes? Que direis que só desde o papado de Leão 10º a Clemente 9º, os carrascos zelosos da fé, espalhados pela França, Holanda, Alemanha, Flandres e Inglaterra; a Saint-Barthelemy, os missionários da Vendea, de Cevennes, da Irlanda, queimaram degolaram e massacraram para cima de outros dois milhões de seres humanos?

Las Casas, bispo espanhol e testemunha ocular de muitas perseguições e autos de fé, atesta que só na América, se imolaram a Deus, por imposição do clero, dose milhões de indígenas! As guerras religiosas do Japão, provocadas pelos missionários europeus, que iam propagar o catolicismo, custaram o melhor de 400.000 vidas! E à sua parte, a Inquisição, no resto dos países, fez queimar igual número de pessoas, sob o pretexto de heresia ou de fé morta.

Os massacres de Meridol e Cabrières são também dignos de Deus: 22 grandes bairros incendiados, crianças de peito lançadas às chamas, jovens desfloradas e cortadas aos bocados, pobres velhas sem préstimo obrigadas a arrastar-se por cima de brasas vivas, tendo cheios de pólvora os orifícios da maternidade e do anus; os maridos, os pais, os irmãos, tratados pouco mais ou menos da mesma sorte; tudo isto junta mais ao rol de Deus o melhor de 18.000 vidas! A guerra religiosa, que se seguiu ao suplício de João Huss e Jerónimo de Praga, custou 150.000 existências. E, no século 14, o grande cisma do Ocidente cobriu a Europa de cadáveres, pois nada menos de 50.000 foram as vítimas dessa raiva papal.

As cruzadas contra os imperadores, desde Gregório 7º, roubaram à Europa 300.000 homens, pelo menos. Nas dos frades cavaleiros (porque também esses tiveram as suas cruzadas) que desbastaram todas as terras marginais do Báltico, os sacrificados não ficaram abaixo dos 100.000. Igual número sucumbiu na cruzada contra o Languedoc, largo tempo coberto pelas cinzas das fogueiras. As guerras movidas pelos papas e bispos entre si custaram 20.000. A imperatriz Teodora, viuva de Teófilo, em cumprimento da penitência imposta pelo seu confessor, fez massacrar 120.000 maniqueus, em 845. As querelas religiosas entre iconoclastas e iconólatras, eliminaram mais de 60.000 vidas. As disputas sobre a consubstancialidade, em matéria de sacramentos, desbastaram muitas províncias, sendo mais de 300.000 cristãos degolados e queimados por outros igualmente cristãos. E como estas outras vítimas: como estes outros atentados, iníquos, monstruosos!"

Que leia por exemplo, as páginas que tratam do ano mil. Ah! os falsos pavores dessa era terrível, que tantas desgraças e tão grande retrocesso social motivaram no mundo! Foi isso, como digo, no ano mil da nossa era. A igreja e com ela toda a cristandade, clamava que fizessem penitência, porque Deus ia dar fim ao mundo. Pois bem, Deus, que sabia tudo, Deus, que todos os dias falava com os seus padres, e estes que toda a hora recebiam, possuíam a Deus, nenhum disse a verdade às multidões. Deus consentiu que os homens deixassem de cultivar os campos, construir as casas, abrir estradas, educar a mocidade, amar e procriar, ordenando-lhes apenas que rezassem, chorassem e morressem de dor, esterilmente, como lobos famintos num deserto! E isto, durante anos e anos!

Muitos, para não assistirem à pavorosa e universal catástrofe, iam afogar-se nos rios, asfixiar-se nas adegas, abrasar-se nos fornos e, quantos, quantos, não foram sepultar-se vivos, em fundas valas e em negras cavidades subterrâneas! Tudo era desolação e morte, na expectativa , desse fim, E Deus viu tudo, Deus quis tudo, e a Igreja a tudo assistiu, como executora dos mandatos divinos.

Pois bem, todas essas lágrimas essas mortes, essas sepulturas vivas, esses ventres estéreis e, principalmente, esses irreparáveis retrocessos intelectuais, morais e económicos, tudo isso se teria evitado se Deus quisesse ser, por um instante que fosse, não digo já pai amantíssimo, mas simplesmente juiz consciencioso, alma de bom sentir e bom querer. Bastava que dissesse ao seu vigário na Terra uma palavra só; bastava um gesto, um aceno, e tudo se teria remediado e evitado. Mas não quis. E ate parecia ser ele o primeiro a sentir e a confessar o medo. Pois o ano mil passou e tudo continuou como dantes menos as terras e outros bens da gente ignara e simples, que passaram a posse dos conventos.

Duvidais também, porventura, das fomes, dos incêndios e das pestes, que no século 17 encheram de luto o mundo inteiro?

Só nas ruas de Londres, em 1664, caíram 50.000 ingleses fulminados pelas epidemias. Para cúmulo de infortúnio, sobreveio, depois, um tão formidável incêndio, que destruiu quase toda a cidade. E na França, ainda o quadro de luto e de miséria foi mais horrorizante. Do alto do seu trono de nuvens, Deus viu a Franca, agonizando com a cólera; viu morrer, viu pedir misericórdia, e ficou mudo, e conservou-se inerte! Ruas inteiras, bairros completes das mais populosas cidades ficaram desertos e sem vida. E quando, à noite, nas ruas, onde a vida palpitava ainda, alguém passava, acossado de pânico, via constantemente abrirem-se janelas, onde caía um corpo, fechando-se em seguida, muitas vezes para não mais se abrirem. De espaço a espaço, passava pelas ruas o carroção lutuoso e sinistro, que recolhia os mortos e seguia para a vala comum. Por fim não havia já quem os enterrasse. Os corpos eram lançados fora, ao acaso, por todos os pontos da cidade, e assim ficavam, decompondo-se, à vista de Deus, que lá das cumeadas do Infinito se estava revendo e regalando com a perfeição da sua obra.

E o Diabo? Esse não se esquece nunca do bem que precisamos, e por isso nos manda de pronto os seus agentes - Apolónio, Galeno, Gutenberg, Watt Palissy, Lavoisier - recomendando-lhes sempre que trabalhem e lutem no sentido do Bem e da Verdade, comuns a todo o ser criado; que sejam moderados, económicos, magnânimos e justos, a fim de podermos e sabermos, para que mutuamente nos amemos e libertemos da dor e da miséria, até que um dia possamos realizar o nosso grande sonho de beleza, pairando, como águias, por sobre toda a imperfeição das coisas.

Que diferença, pois, entre o bom Deus e o mau Diabo, o qual, apenas pressente estas desgraças, estas crises morais e económicas, logo corre a chamar os seus amigos, a quem vai levar o segredo da maior felicidade, ensinando-Ihes a procurar o ferro, o ouro, a prata, o cobre e a platina; indica os bons terrenos, tanto os que produzem frutos, como os que encerram minas de hulha; marca os pontos onde a vida melhor se poderá viver e dilatar; aplica à indústria o carvão e o vapor, funde os metais, prepara enxadas e charruas. Foi ele que nos ensinou a domesticar o boi e o cavalo, que nos levou ao fundo das minas, aos grandes e inesgotáveis depósitos carboníferos; conduziu-nos através das florestas, desceu connosco ao fundo dos oceanos e, não farto de nos prestar todo este apoio, ajudou-nos ainda a erguer os muros e lançar os telhados da nossa habitação, preparou-nos os remédios na doença, evitou-nos as correntes de ar, as chuvas, as pestes, os tormentos contínuos, as misérias sem fim, e, finalmente, deu-nos a paz, a abundância, a liberdade e o sonho, a resignação e o amor.

E Deus maquinando na sombra! Que virá agora? Que nos dará ele em desconto do bem que o outro nos mandou ?- pergunta a cristandade suplicante, interroga o mundo em desalento ! Ah! dá-nos, por exemplo, o Santo Oficio, Inácio de Loiola e Torquemada, para que seja castigado e destruído esse povo rebelde, que assim tenta desobedecer-lhe, inventando artes de prosperar e ser feliz.

Mas o Diabo surge. E no ponto em que mais acesa encontra a guerra do Absoluto contra o Relativo, aí mesmo alicia os seus agentes. Enquanto um lança ao mar o seu navio, outro faz circular comboios, outro voa nos ares, como as águias do Cáucaso, o povo fraterniza, atenuando assim as cóleras de Deus. Emigra para novas terras, procura novos horizontes, sulca os mares, interna-se em florestas, ama, luta e é feliz, quanto pode sê-lo um perseguido do Infinito.

E Deus sempre descontente. De Roma chovem os anátemas, e os papas, seus intérpretes, ameaçam de morte a humanidade, exigindo suplícios, martírios, agonias. A sociedade clama? Tem fome de pão e sede de justiça? Deus não hesita, manda-a encarcerar, banir, privar dos sentidos, da alegria, do trabalho que redime, do amor que adoça e santifica as almas, do espírito que liberta as consciências, da luz que move o mundo e anima a vida.

E o Diabo contente, porque vê os homens cumprindo os seus deveres. E porque espera e crê na sua obra de resgate, leva-os às fabricas e às minas, ensina-lhes a tecer o linho, cardar a lã, canalizar o gás e a água, sanear as ruas e os pântanos, arborizar os montes, evitar os perigos, prever o tempo, conhecer os astros, anunciar os eclipses e redimir consciências, formando caracteres e organizando povos em comunas livres na livre comunhão de todo o bem. Pio 9º, esse filho de Deus, escreve o Sílabus! Condena humanidade à escravidão e à ignorância! Embora : não conseguirá realizar os seu s planos, porque o Diabo chama Garibaldi, Cavour e Mazzini e manda dar trabalho aos ociosos, pão aos famintos, escola aos ignorantes, património aos deserdados, paz aos perseguidos e felicidade aos miseráveis.

Mas para que vamos tão longe buscar factos que todos vimos já, perto da nossa porta? Lembram-se de quando, há anos, aqui caiu um raio que matou uma família inteira, à hora em que, no campo, preparava o pão de cada dia, abatendo também os bois com que lavravam a terra? Pois toda a gente, de um ao outro extremo do concelho, atribuiu a Deus essa calamidade irreparável. E quando tempos depois, aqui passou o comboio, a que já fizemos referência, comboio que nos conduzia à vida, ao trabalho, à liberdade, fazendo com que as nossas propriedades rendessem o dobro e a nossa produção tivesse mercado e venda pronta, todos disseram à uma: É o Diabo, é o Diabo! Por essa altura voltavam a perturbação e a dor ao coração do povo, sob a forma de cólera-morbus e varíola, que, caindo no seio das famílias, levou filhos e pais parentes e amigos. Debalde se fartaram todos de pedir a Deus misericórdia, para que suspendesse a cólera divina. Fizeram-se preces públicas, prometeram-se juntas de bois aos santos, tranças de cabelo virgem ás santas, romagens de joelhos ás ermidas, jejuns de um ano ao Santíssimo, e de nada valeu a nossa fé. Lembram-se bem não é verdade?...

...Deus, que nos ouve e nos vê decerto nos aplaude, pois está-nos fazendo o mesmo que tem feito aos que na Terra se dizem seus representantes... Querem vocês saber como ele usa assistir aos concílios e outras reuniões da Igreja? Em qualquer dessas assembleias, a que o papa assiste muitas vezes e onde estão cardeais, patriarcas, bispos e padres, ergue-se de lá um, muito solene, muito grave e, dirigindo-se ao espirito invisível, ao mistério, exclama Se Deus aprova, que se deixe estar. Por conseguinte, se o vosso receio é que Deus não esteja satisfeito connosco, digamos nós também, como esses padres, ao começar este serão: - Se Deus não está contente connosco, se não aprova as nossas intenções e decisões que vão seguir-se, que faça o favor de se manifestar, erguendo-se, falando, exteriorizando-se, enfim. ...Como vêem, Deus conforma-se, aprova as nossas decisões. Dá-nos o mesmo apoio que deu aos 318 bispos que, no ano 325, se reuniram em Niceia, para condenarem Ario, que negava a consubstancialidade do filho com o pai, o mesmo que deu aos 150 que, em 381, em Constantinopla, acrescentaram ao símbolo a palavra filioque, o mesmo ainda que deu aos 198 que, em Efeso, no ano de 341, se congregaram para condenar Nestório, que negara a União das duas naturezas em Cristo... Presta-nos o mesmo auxílio que prestou aos 135 bispos reunidos em Efeso, em 449, para excomungarem Flaviano e aplaudirem Eutiques; o mesmíssimo que prestou ainda aos 600 bispos do Oriente que, em 451, voltaram a reunir-se em Calcedónia para aprovarem agora o que haviam reprovado antes, excomungando Eutiques e louvando Flaviano... que morrera na Lídia, desterrado, abandonado, faminto e desonrado.

Deus, emudecendo aqui, junto a nós dá-nos as mesmas provas de amizade e protecção, que deu aos 150 bispos chamados a Constantinopla, em 553, para debaterem a poderosa questão dos três capítulos! Faz-nos a mesma justiça que fez aos 174 bispos reunidos no concílio de; Trulo, em 680, para condenarem o monoteísmo e proclamarem duas vontades em Cristo. (Quando, em 754 compareceram em Constantinopla 338 bispos a fim de condenarem o culto das imagens, anatematizando todo aquele que o defendesse, Deus, que estava tão presente como aqui, fez-lhes o mesmo que acaba de fazer-nos e o mesmo ainda que, 33 anos depois, lhes voltou a fazer, em novo concilio ecuménico, onde voltaram muitos daqueles que viviam ainda, a fim de ser restabelecido o culto das imagens, tão duramente excomungado antes e com à mesmíssima aprovação divina). Aplaude-nos, como aplaudiu os 319 bispos que no ano 861, se reuniram, sob a presidência de Focius, bispo de Siracusa, e com a assistência dos legados pontifícios, condenaram Inácio, patriarca de Constantinopla, bem como igualmente aplaudiu os bispos que, um ano depois, restabeleceram Inácio e excomungaram Focius, voltando ainda a excomungar Inácio e a louvar Focius com os bispos que de novo se juntaram, sempre de acordo com o papa e os seus legados.

Deus mostra por nós a mesma solicitude e carinho que mostrou em 867, aprovando as futuras decisões do grande concílio que em Constantinopla excomungou depois o papa Nicolau. A sua divina misericórdia assiste-nos, tão onipresentemente, como assistiu; ao papa Urbano 2º e seus súbditos, Placença e Clermont, no ano 1095, onde se decidiram e proclamaram as cruzadas. Dá-se aqui o mesmo que em 1074, quando Gregório 7º, cercado da sua corte e assistido, como nós, do Espírito Santo, condenou os padres simoníacos; o mesmo que, dois anos mais tarde, sucedeu em Worms, onde Deus deu a sua plena e incondicional aprovação aos bispos que depuseram o mesmo papa que, por sua vez, reuniu em Roma, na presença do mesmo Deus, 110 bispos, que tiveram licença para excomungar os promotores do concílio anterior. Deus, que logo se passou, indo aprovar e aplaudir as decisões daqueles bispos venerandos que, por sua vez, excomungaram e depuseram o papa, o qual foi obrigado a fugir, indo esconder-se na Torre de Santo Angelo, de onde fugiu, também, para ir morrer abandonado e inconsolável, na pequena Salerno! Esse Deus, justo e clemente, está junto de nós, afirmando-nos a sua adesão, tal como, no 4º concílio de Latrão, aos 71 primazes e metropolitas, aos 412 bispos e patriarcas, aos 800 abades e priores, além de muitos príncipes e embaixadores de vários reinos, que condenaram ao extermínio e à morte os desgraçados albigenses. E quando, mais tarde, o papa Clemente 7." excomungava o seu rival Urbano 7º , também papa, que por sua vez o excomungou a ele, era ainda Deus que presidia aos seus juízos, tal como está hoje presidindo aos nossos. Está aqui como esteve no concílio ecuménico de Pisa, onde, com a sua divina aprovação, foram excomungados os seus vigários infalíveis, Gregório 12º e Bento 13º. Está aqui e tão divinamente como esteve no célebre concílio em que João 22º foi obrigado a abdicar; em que, na sua 4ª e 5ª sessões, foi proclamada a supremacia dos concílios sobre os papas; em que na sessão 37ª, foi deposto o papa Bento 13, que o mesmo concilio havia eleito; e em que finalmente, foi condenado João Huss e Jerónimo de Praga, por haverem proclamado a suprema e única autoridade de Cristo sobre os papas eleitos a poder de dinheiro e capricho dos reis, pelo que se determinou fossem queimados vivos! E isto sempre sobre o olhar magnânimo do supremo Senhor, que, como aqui, não cessava de louvar e aplaudir esse procedimento!

Sim Deus aplaude a nossa obra, com a mesma veemência com que aplaudiu, por dezoito longos anos, a grande multidão de legados pontifícios, cardeais, patriarcas, arcebispos, abades, generais, príncipes e fiéis de todas as categorias, que no concilio de Trento estabeleceram o dogma do Purgatório, definiram a invocação dos Santos, o culto das imagens e relíquias, a doutrina das indulgências, acabando por condenar todos os livros que de algum modo pudessem instruir, esclarecer, aperfeiçoar e libertar a humanidade, ainda semi-cega dos terrores da Idade Media, em que os pregadores eram analfabetos e os santos se recusavam a aprender a ler e a lavar-se. Sim. Deus assiste à nossa obra com tão absoluta omnipresença como assistiu a Gregório 13 e ao seu sacro colégio, quando, em Roma, celebraram e mandaram celebrar festas de publico regozijo pela matança de S. Bartolomeu. Enfim, meus amigos, para terminarmos esta apresentação dos divinos poderes, Deus está tão presente à nossa assembleia, como estava, em 1869 à dos 747 bispos, que, na bastilha de S. Pedro, cheios de medo pelos destinos da Igreja, debateram o dogma da infalibilidade papal, dos quais, por sinal, só 535 o aprovaram, condenando assim a liberdade e a razão, pelo que foram obrigados a suspender as sessões e saírem de Roma a toda a pressa, para não serem escorraçados pela bota irreverente dos piemonteses, supremos senhores da Cidade Eterna.

Portanto Deus calando-se aqui, como sempre fez nesses grandes concílios do passado, mostra que está contente com o que temos feito e, sobretudo, com o que vamos dizer neste sentido...

Lisboa, 5 Janeiro de 1998

(Núcleo de Cidadãos amigos de Tomás da Fonseca)