A VERDADE(1)

Qual é essa quimera impotente e estéril

Essa divindade que aos imbecis apregoam

Uma cambada odiosa de padres impostores?

Querem tornar-me num dos seus sectários?

Ó! nunca, juro-o e cumprirei a minha palavra,

Nunca esse bizarro e nojento ídolo,

Esse filho do delírio e do escárnio,

Impressionará minimamente o meu coração.

Contente e orgulhoso do meu epicurismo,

Pretendo expirar no seio do ateísmo.

E que o Deus infame com que pretendem

(assustar-me

Nunca eu o conceba senão para o blasfemar.

Sim, vã ilusão, a minha alma detesta-te,

E para que te convenças aqui o proclamo.

Gostaria que pudesses viver por um momento

Para gozar o prazer de melhor te insultar.

Qual é, com efeito, esse execrável fantasma,

Esse Deus cagão, esse ser pavoroso

Que não se deixa ver nem dá sinal de vida,

Que o insensato teme e de quem o sábio ri,

Que não fala aos sentidos e que ninguém pode

(compreender,

Cujo culto selvagem fez derramar entre nós,

Desde sempre, mais sangue que a guerra

Ou a fúria de Témis em mil anos?

Por mais que analise este deifico tratante,

Por mais que o estude, o meu olho filosófico

Não vê neste motivo das vossas religiões

Senão um conjunto impuro de contradições

Que não resiste a um exame sério,

Que podemos insultar, desafiar, ultrajar à vontade.

Fruto do temor, criado pela esperança,

Inconcebível para o nosso espírito,

Tornando-se consoante a mão que o brande

Objecto de terror, de alegria ou de vertigem,

Que o hábil impostor que o anuncia aos

(humanos

Faz reinar como quer sobre os nossos destinos,

Descrevendo-o ora como mau, ora como

(bonacheirão,

Ora massacrando-nos ora servindo-nos de pai,

Atribuindo-lhe sempre, segundo as suas paixões,

Os seus costumes, o seu carácter e as suas

(opiniões,

Quer a mão que perdoa, quer a que nos trespassa.

Ei-lo, esse Deus idiota com que nos engana

(o padre.

Mas com que direito pretende submeter-me

Ao seu erro aquele que a mentira escraviza?

Necessitarei acaso do Deus de que abjura

A minha razão para aceitar as leis da natureza?

Nela tudo se move, e o seu seio criador

Age continuamente sem a ajuda de um motor.

Que ganharia eu com essa segunda dificuldade?(2)

Demonstrará esse Deus a causa do Universo?

Se cria, foi criado e eis-me de novo incerto

Como antes de recorrer a ele.

Foge, foge para longe, impostura infernal;

Cede, desaparecendo, às leis da natureza:

Ela faz tudo por si própria, tu não passas do vazio

Onde a sua mão nos foi buscar quando nos criou.

Some-te pois, execrável quimera!

Foge para longe, abandona a terra,

Onde não encontrarás senão corações

(empedernidos

Pela algaraviada mentirosa dos teus míseros amigos!

Quanto a mim, confesso, o ódio que te tenho

É ao mesmo tempo tão certo, tão grande e tão forte

Que seria com prazer, Deus vil, e sem pressas,

Que me masturbaria sobre a tua divindade,

Ou enrabar-te-ia, se a tua frágil existência

Pudesse oferecer um cu à minha incontinência.

Depois arrancar-te-ia com força o coração

Para melhor te compenetrares do meu profundo

(horror.

Mas seria em vão que se procuraria atingir-te,

A tua essência escapa a quem a quer coagir.

Não podendo esmagar-te, pelo menos entre

(os mortais,

Gostaria de destruir os teus perigosos altares

E demonstrar àqueles que um Deus ainda cativa

Que esse aborto covarde que a sua fraqueza adora

Não pode pôr termo às paixões.

Ó sagrados movimentos, orgulhosas impressões,

Sede pra sempre objecto das nossas

(homenagens

As únicas dignas do culto dos verdadeiros sábios,

As únicas que sempre deleitaram os nossos

(corações

As únicas que a natureza proporciona à nossa

(felicidade

Cedamos à sua autoridade, e que a sua violência

Subjugando os nossos espíritos sem resistência

Faça dos nossos prazeres leis, impunemente:

O que a sua voz prescreve são os nossos desejos,

Seja qual for a desordem para que nos arraste,

Devemos ceder-lhes sem remorsos e sem

(dificuldade

E, sem consultar as nossas leis ou costumes,

Entregarmo-nos com ardor a todos os erros

Que pela sua mão a natureza sempre nos ditou.

Nunca respeitemos senão o seu divino murmúrio;

O que em todos os países as nossas leis vãs punem

Foi sempre o que melhor serviu os seu desígnios.

O que parece ao homem uma cruel injustiça,

Não passa do efeito da sua mão corrupta sobre nós,

E quando, por força do hábito, tememos vacilar

Só conseguimos acolhê-la ainda melhor.

Essas doces acções a que chamais crimes,

Esses excessos que os parvos julgam ilegítimos,

São apenas os desvios que lhe agradam,

Os vícios, as tendências que mais aprecia;

O que ela grava em nós é sempre sublime,

Aconselhando o horror, ela designa a vítima:

Golpeêmo-la sem temor e não receemos

Ter cometido uma perversidade, cedendo.

Examinemos o raio nas suas mãos sanguinárias;

Ele fulmina ao acaso, os filhos, os pais,

Os templos, os bordéis, os beatos, os bandidos,

Tudo serve à natureza: precisa de delitos.

Do mesmo modo a servimos ao cometer um crime:

Quanto mais o propagamos, mais ela o adora.

Usemos os direitos poderosos que exerce sobre nós

Entregando-nos sem fim aos gostos mais

(monstruosos:

Nenhum é proibido pelas suas leis homicidas,

E o incesto, a violação, o roubo, os parricídios,

Os prazeres de Sodoma, os jogos de Safo,

Tudo o que faz mal ao homem ou o mata

É, podeis crer, um meio de lhe agradar.

Destronando os deuses, roubemo-lhes o trovão.

E com esse raio faiscante destruamos tudo

O que nos desagrada neste mundo assustador.

Sobretudo não poupemos nada; que as suas

(próprias

Atrocidades sirvam de exemplo às nossas piores

(proezas

Não há nada sagrado: tudo neste universo

Se deve vergar perante os nossos fogosos caprichos.

Quanto mais multiplicarmos, diversificarmos

(a infâmia,

Mais a sentiremos fortalecida nas nossas almas,

Duplicando, encorajando as nossas cínicas

(experiências

Conduzindo-nos, dia a dia, passo a passo,

(à malvadez.

Após os melhores anos, se a sua voz volta

(a chamar-nos

Regressemos a ela fazendo pouco dos deuses,

O seu cadinho espera-nos para nos recompensar;

O que o seu poder nos tirou, a sua necessidade

(devolve-nos,

Nela tudo se reproduz, tudo se regenera:

Dos grandes como dos pequenos a puta é a mãe

E aos seus olhos somos todos queridos,

Monstros e malvados ou bons e virtuosos.



(1) A VERDADE, poema em versos alexandrinos, em rima

emparelhada, foi escrita em 1787

(MARQUÊS DE SADE 1740-1814)