RETRATO DUM VERDADEIRO ATEU
Pois bem, um verdadeiro ateu é o homem do século de ouro(*). O ateu é aquele que, revertendo sobre si próprio e libertando-se dos laços que o obrigaram a contrair contra sua vontade ou sem saber, regressa através da civilização a esse antigo estado da espécie humana, e fazendo no forum da sua consciência, mão baixa sobre os preconceitos de toda a espécie, se aproxima o mais possível desse afortunado tempo em que se não suspeitava da existência divina, onde todos se sentiam e se contentavam unicamente com os deveres da família. O ateu é o homem da Natureza.
Todavia, colocado hoje numa esfera mais complicada e limitada, cumpre as suas obrigações de cidadão e resigna-se aos decretos da necessidade. Gemendo, embora, contra as bases viciosas das instituições políticas, mostrando desprezo pelos que tão mal as organizam, submete-se à ordem pública onde se encontra. Não vemos porém, tornar-se chefe de partido ou de opinião. Nunca o encontramos na vulgar via que conduz aos empregos úteis ou brilhantes. De acordo com seus princípios, vive no meio dos contemporâneos corrompidos ou corruptores como o viajante que, tendo de atravessar regiões lamacentas, se protege contra o veneno dos répteis. Basta-lhe ficar ensurdecido pelos silvos. Caminha entre tais seres daninhos sem se deixar influenciar pelo seu aspecto viscoso e rastejante.
O verdadeiro ateu não é o sibarita que, considerando-se epicurista, não receia repetir no seu coração já cansado: "Deus não existe, a moral não existe e, portanto, posso permitir-me tudo."
O verdadeiro ateu não é esse homem de Estado que, sabendo que a quimera divina foi imaginada para a impor aos homens-povo, os governa em nome de tal Deus de que se ri em privado.
O verdadeiro ateu não pertence ao número desses heróis hipócritas e sanguinários que, para abrirem caminho a uma vitória se apresentam às nações que pretendem conquistar, como protectores do culto que elas professam, divertindo-se no seio dos seus familiares com a credulidade humana.
O verdadeiro ateu não é o homem vil que, desonrado ao longo dos anos pelo caracter indelével da impostura sacerdotal, muda de hábito e opinião, quando esse infame ofício deixa de ser lucrativo e vem, com impudência, alinhar com os sages que anteriormente perseguia
... ... ... ...
O verdadeiro ateu não é desse homens do mundo, ou pessoas como deve ser que pelo tom(**) desdenham o uso do pensamento e vivem pouco mais ou menos como o cavalo que montam ou a mulher que mantém.
O verdadeiro ateu não se senta nas cadeiras das sociedade científicas cujos indivíduos mentem incessantemente à sua própria consciência e consentem em dissimular o pensamento, atrasar a marcha solene da filosofia, atendendo a miseráveis interesses pessoais ou mesquinhas considerações políticas.
O verdadeiro ateu não é o pseudo-sábio que gostaria de ser o único ateu do mundo; e que abandonaria tal situação logo que o maior número de pessoas se tornassem ateus. A mania de se singularizar habita-o em vez da filosofia. O amor próprio é o seu Deus. Se pudesse guardaria só para si a luz; ouvindo-o poderíamos pensar que o resto do mundo não é digno de a receber.
O verdadeiro ateu não é também esse filosofista timorato e sem energia que cora da sua opinião como dum mau pensamento; cobarde amigo da verdade, compromete-a de preferência a comprometer-se a si. Vemo-lo frequentar os templos para afastar de sua pessoa a suspeita de impiedade; egoísta circunspecto até à pusilanimidade, a extirpação dos mais antigos preconceitos parece-lhe sempre prematura: não receia Deus, mas teme os homens. Que se destruam nas guerras religiosas e civis, pouco lhe importa, desde que viva sossegado e em repouso!
O verdadeiro ateu não é também esse físico sistemático que só rejeita Deus para ter a glória de fabricar o mundo à sua vontade, sem outro socorro além da sua imaginação.
O verdadeiro ateu não é tanto o que diz: "Não não quero um Deus"; mas o que afirma: "Posso ser sage sem um Deus.
O verdadeiro ateu não é aquele que raciocina com mais argúcia contra a existência divina.
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O verdadeiro ateu é um filosofo modesto e tranquilo que não gosta de barulho e não passeia os seus princípios com ostentação pueril(***), pois o ateísmo é a coisa mais natural e simples do mundo.
Sem disputar por ou contra a existência divina, o ateu segue a direito o seu caminho e faz por si próprio o que os outros fazem pelo seu Deus: pratica a virtude não para agradar à divindade, mas para estar de bem para consigo próprio.
Demasiado orgulhoso para obedecer a outro, mesmo sendo um Deus, o ateu só recebe ordens da sua consciência.
O ateu tem um tesouro a preservar: a sua honra. Ora um homem que se respeita, sabe o que não deve fazer ou o que se pode permitir, e coraria se, nesse ponto, tivesse de pedir conselho ou seguir um modelo.
O ateu é um homem de honra. Envergonhar-se-ia de dever a um Deus uma boa obra que em seu nome pode criar. Não gostaria de ser empurrado para o bem ou afastado para o mal; procura um e evita o outro por sua livre vontade; e pode-se ter confiança nele.
Quantas belas acções foram atribuídas a Deus, acções que só tinham como principio o coração do grande homem que as produziu!
O mais perfeito desinteresse é a base de todas as resoluções do ateu. Sabe que tem direitos e deveres: exerce uns sem arrogância; os outro sem constrangimento. A ordem e a justiça são as suas divindades; e só lhes faz livres sacrifícios: só o sage tem o direito de ser ateu.
(*) S. Maréchal definiu-o como "um tempo no qual o homem vivendo em família só reconhecia a autoridade do pai". Trata-se do estado de inocência primitiva da humanidade.
(**) Por afectação mundana "Aquilo a que se chama o tom, essa espécie de imprudência que de nada duvida e que não permite réplica.
(***) Alguns conhecidos ateus não têm suficiente consciência da dignidade da sua opinião.
SYLVAIN MARECHAL 1750-1803 (Dicionário dos Ateus. Discurso Preliminar: O que é um ateu?)
MORAL SOBRE DEUS
Escolhe: ou o universo de si próprio é o motor
Ou seu autor, sem fim, carecerá de autor.
"Não (responde um teísta); só por si existindo,
Necessário, absoluto, o ordenador supremo,
Profundo, ilimitado, imenso em seu poder,
Dá origem a tudo, sem de origem carecer".
Teísta inconsequente, dize lá, à matéria
Porque recusas tu esse poder completo?
O Deus, que com esforço tu fazes intervir
Resulta duplo obstáculo que terás de elidir.
O grandioso Universo acaso não poderia
Ter no vivente seio a fonte de energia?
Conheces a matéria e tudo quanto encerra?
Não, só a vês passiva, exânime, indigente.
Pois antes de a julgares e lhe dares um senhor
Cumpria conhecê-la, meu obtuso Doutor.
Que espírito poderia, agindo sobre os corpos,
Combinar, dirigir seus rudes mecanismos?
É acaso a mão de Deus, que impulsionando a
pedra,
A expulsa e precipita para o centro da terra?
Acaso a voz de um Deus diz ao lobo cruel
Que as ovelhas ataque ou ao pastor fiel?
Tenta tu a experiência; observa a natureza;
Adivinha os segredos do seu método obscuro;
Das artes cultivadas toma na mão o facho,
Procura um mundo novo no patente universo.
Não admitas um Deus pai de todas as coisas
Se a matéria dispensa uma causa primeira.
"A matéria sem causa!..." mas admitindo um Deus
Pode ainda surgir uma objecção igual.
Será o Deus sem causa mais fácil de admitir?
"Causa e Deus são palavras..."quem as pode
entender?...
O universo é a causa nada a pode exceder;
Situá-la além dele é tudo complicar.
Se infinita é a matéria, onde pode ele estar?
Ai! Em vão se procura conhecer o insensível,
Sem figura nem voz, esse informe e invisível,
Escapando aos sentidos, esconde-nos o que é.
Ora ou Deus não existe; ou a sua existência
É fruto proibido à nossa inteligência.
SYLVAIN MARÉCHAL
(Fragmentos dum Poema Moral sobre Deus. Athéopolis, 1781)
Ou seu autor, sem fim, carecerá de autor.
"Não (responde um teísta); só por si existindo,
Necessário, absoluto, o ordenador supremo,
Profundo, ilimitado, imenso em seu poder,
Dá origem a tudo, sem de origem carecer".
Teísta inconsequente, dize lá, à matéria
Porque recusas tu esse poder completo?
O Deus, que com esforço tu fazes intervir
Resulta duplo obstáculo que terás de elidir.
O grandioso Universo acaso não poderia
Ter no vivente seio a fonte de energia?
Conheces a matéria e tudo quanto encerra?
Não, só a vês passiva, exânime, indigente.
Pois antes de a julgares e lhe dares um senhor
Cumpria conhecê-la, meu obtuso Doutor.
Que espírito poderia, agindo sobre os corpos,
Combinar, dirigir seus rudes mecanismos?
É acaso a mão de Deus, que impulsionando a
pedra,
A expulsa e precipita para o centro da terra?
Acaso a voz de um Deus diz ao lobo cruel
Que as ovelhas ataque ou ao pastor fiel?
Tenta tu a experiência; observa a natureza;
Adivinha os segredos do seu método obscuro;
Das artes cultivadas toma na mão o facho,
Procura um mundo novo no patente universo.
Não admitas um Deus pai de todas as coisas
Se a matéria dispensa uma causa primeira.
"A matéria sem causa!..." mas admitindo um Deus
Pode ainda surgir uma objecção igual.
Será o Deus sem causa mais fácil de admitir?
"Causa e Deus são palavras..."quem as pode
entender?...
O universo é a causa nada a pode exceder;
Situá-la além dele é tudo complicar.
Se infinita é a matéria, onde pode ele estar?
Ai! Em vão se procura conhecer o insensível,
Sem figura nem voz, esse informe e invisível,
Escapando aos sentidos, esconde-nos o que é.
Ora ou Deus não existe; ou a sua existência
É fruto proibido à nossa inteligência.
SYLVAIN MARÉCHAL
(Fragmentos dum Poema Moral sobre Deus. Athéopolis, 1781)