Friedrich Engels
O CAPITAL de Marx (1)
I
Desde que no mundo há capitalistas e operários que não tinha aparecido um livro de tão grande importância para os operários como este. As relações entre o Capital e o Trabalho, eixo em torno do qual gira todo o nosso sistema social actual, são pela primeira vez tratados cientificamente com uma profundidade e uma clareza só possíveis num alemão. Por mais preciosos que sejam e serão os escritos de um Owen, de um Saint-Simon ou de um Fourier, estava reservado a um alemão elevar-se à altura necessária para ver claramente e panoramicamente o domínio inteiro das relações sociais modernas, da mesma maneira que, ao espectador situado no mais alto pico, aparecem as formações montanhosas menos elevadas.
A economia política ensina-nos até agora que o trabalho que o trabalho é a fonte de toda a riqueza e a medida de todos os valores, de tal modo, que dois objectos cuja produção custou o mesmo tempo de trabalho têm o mesmo valor e devem ser trocados um pelo outro visto que, em geral, só valores iguais podem ser trocados entre si. Mas também ensina que existe uma espécie de trabalho armazenado a que chama capital; que esse capital, graças às possibilidades que contém, multiplica por cem e por mil a produtividade do trabalho vivo, reclamando para tal uma certa compensação a que se chama lucro ou benefício. Como todos sabemos, as coisas apresentam-se na realidade assim: os lucros do trabalho morto, acumulado, constituem uma massa cada vez maior, os capitais dos capitalistas tomam proporções cada vez mais colossais, enquanto o salário do trabalho vivo é cada vez menor, e a massa dos operários que vive unicamente do salário é cada vez maior e mais pobre. Como resolver esta contradição? Como pode haver um lucro para o capitalista se o operário receber o valor total do trabalho que acrescenta ao produto? E, no entanto, visto que só valores iguais são trocáveis, devia ser assim. Por outro lado, como podem valores iguais ser trocados, como pode o operário receber o valor inteiro do seu produto, se como concebem muitos economistas, esse produto é dividido entre o operário e os capitalistas? A economia encontra-se até hoje perplexa face a esta contradição, escreve ou balbucia fórmulas confusas e vazias. Mesmo os críticos socialistas da economia não foram até aqui capazes de fazer mais do que sublinhar esta contradição; nenhum a resolveu até ao momento em que, finalmente, Marx, perseguindo o processo da formação do lucro até ao local onde este nasce, esclareceu completamente o assunto.
Ao descrever o desenvolvimento do capital, Marx parte do facto simples e notório de que os capitalistas valorizam o capital através da troca; compram mercadoria por uma certa soma e revendem-na a seguir por uma soma mais elevada. Um capitalista compra por exemplo 1000 thaler de algodão e revende-o a seguir por 1100 thaler, ganhando assim 100 thaler. É a este excedente sobre o capital inicial que Marx chama mais valia. Donde provém essa mais valia? Segundo a hipótese dos economistas só valores iguais são trocáveis, e, no domínio da teoria abstracta a verdade também é essa. A compra do algodão e a sua revenda não pode portanto fornecer mais valia do que a troca de um thaler de prata por 30 gros(2) de prata, seguida da troca destes por um outro thaler de prata, operação em que não se enriquece nem empobrece. Mas a mais-valia também não pode provir do facto de os vendedores venderem as mercadorias acima do seu valor, ou de os compradores as comprarem acima do seu valor, porque sendo cada um deles tanto vendedor como comprador, há por consequência compensação. Também não pode provir do facto de compradores e vendedores encarecerem entre eles o produto, visto que isso não produziria um novo valor ou mais-valia, e, ao contrário, não faria mais do que repartir de outra maneira o capital existente entre os capitalistas. Ora apesar de o capitalista comprar e revender as mercadorias pelo seu valor, obtém mais valor do que aquele que investiu. Como se produz este facto?
Nas condições sociais actuais, o capitalista encontra no mercado uma mercadoria que tem a seguinte propriedade particular: o seu consumo é fonte de um novo valor, cria um novo valor, e, essa mercadoria é a força de trabalho.
Qual é o valor da força de trabalho? O valor de cada mercadoria é medido pelo trabalho que a sua produção exige. A força de trabalho existe na forma de um operário vivo que necessita para viver e sustentar a família que assegura a persistência da força de trabalho depois da morte, de uma determinada soma de meios de subsistência. É portanto o tempo de trabalho necessário à produção desses meios de subsistência que representa o valor da força de trabalho. O capitalista paga ao operário à semana comprando assim o emprego do seu trabalho por uma semana. Até aqui os senhores economistas estarão suficientemente de acordo connosco sobre o valor da força de trabalho.
Nessa altura o capitalista põe o seu operário a trabalhar. Durante um determinado tempo o operário terá fornecido tanto trabalho quanto o representado pelo salário semanal. Admitindo que o salário semanal de um operário representa três dias de trabalho, o operário que começa na Segunda-feira, na Quarta-feira à tarde devolveu ao capitalista o valor total do salário pago. E deixa de trabalhar? Bem ao contrário. O capitalista comprou o trabalho por uma semana, e é necessário que o operário ainda continue a trabalhar durante os últimos dias da semana. Este sobretrabalho do operário para além do tempo necessário para devolver o valor do salário, é a fonte da mais-valia, do lucro e do aumento sempre crescente do capital.
Que não se diga que é uma suposição gratuita afirmar que o operário produz em três dias o salário que lhe foi pago, e nos outro três trabalha para o capitalista. Se necessita exactamente de três dias para devolver o salário, ou de dois, ou de quatro é coisa que para aqui é totalmente indiferente e que aliás muda segundo as circunstâncias; o principal é que o capitalista além do trabalho que paga, obtém trabalho que não paga, e não se trata de uma suposição arbitrária, visto que no dia em que o capitalista não recebesse de forma contínua senão o trabalho que paga em salário, fecharia a sua fábrica porque todo o lucro se esfumaria.
Eis que resolvemos todas estas contradições. A formação da mais-valia (de que o lucro do capitalista constitui uma boa parte) é agora perfeitamente clara e natural. O valor da força de trabalho é pago, mas esse valor é muito menor do que aquele que o capitalista sabe arrecadar da força de trabalho, e a diferença, o trabalho não pago, constitui precisamente a parte do capitalista, ou mais exactamente, da classe capitalista. E isto porque mesmo o lucro que, no exemplo citado mais acima, o comerciante de algodão obteve, deve necessariamente consistir em trabalho não pago se os preços de algodão não aumentaram. Foi necessário que o comerciante vendesse a um fabricante de tecidos de algodão que, além dos cem thaler já ganhos pelo comerciante, possa obter por sua vez um benefício pela sua fabricação, repartindo-se assim pelos dois o trabalho não pago que o fabricante obteve. É este trabalho não pago que em geral sustenta todos os membros da sociedade que não trabalham. É também com esse trabalho não pago que se pagam os impostos do Estado e das municipalidades, na medida em que esses impostos atingem a classe capitalista e as rendas da terra dos grandes proprietários, etc.. É sobre esse trabalho não pago que repousa todo o estado social existente.
Aliás, seria ridículo pensar que o trabalho não pago só se formou nas condições actuais, em que a produção é realizada por capitalistas assalariados. Longe disso. Desde sempre a classe oprimida foi obrigada a fazer trabalho não pago. Durante todo o logo tempo em que a escravatura foi a forma reinante da organização do trabalho, os escravos foram obrigados a trabalhar muito mais do que lhe era dado sob a forma de maios de subsistência. Sob a dominação da servidão e até à abolição das corveias(3), passava-se a mesma coisa; e aqui aparecia de maneira tangível a diferença entre o tempo em que o camponês trabalhava para a sua própria subsistência e aquele em que realizava sobretrabalho para o senho, visto que estas duas formas de trabalho se faziam separadamente. A forma é hoje diferente mas o essencial não mudou, e enquanto "uma parte da sociedade possuir o monopólio dos meios de produção, o trabalhador, livre ou não, é forçado a acrescentar ao tempo de trabalho necessário à sua própria subsistência, um excedente destinado à manutenção do possuidor dos meios de produção". (Marx(4).
II
Vimos no artigo precedente que cada operário ao serviço do capitalismo faz um trabalho duplo: durante uma parte do tempo de trabalho, restitui o salário que o capitalista lhe havia avançado, parte a que Marx chamou trabalho necessário. A seguir, deve continuar a trabalhar para produzir mais-valia para o capitalista, sendo o lucro deste uma parte importante daquela. A este trabalho chama-se sobretrabalho.
Suponhamos que o operário trabalha três dias da semana para restituir o salário e três dias para produzir a mais-valia para o capitalista. Noutros termos isto quer dizer que, numa jornada de 12 horas, trabalha seis horas para o seu salário e seis horas para criar mais-valia. Mas, da semana não se podem fazer mais de seis dias ou, contando com o Domingo, sete, ao passo que cada dia podem ser seis, oito, dez, doze, quinze ou mais horas de trabalho. O operário vendeu pelo seu salário, uma jornada de trabalho ao capitalista. Mas, o que é um dia de trabalho? Oito horas ou dezoito?
O capitalistas tem interesse em prolongar a jornada de trabalho tanto quanto possível. Quanto mais longa for, maior será a mais-valia criada. O operário tem a justa sensação de que cada hora feita para lá da restituição do salário, lhe é ilegitimamente roubada; é no próprio corpo que sente o que é trabalhar muito tempo seguido. O capitalista bate-se pelo seu lucro, o operário bate-se pela saúde, por algumas horas de repouso quotidiano, para poder, fora das horas de trabalho, do sono e da comida, fornecer ainda uma outra actividade humana. Notemos de passagem que não depende da boa vontade do capitalista tomado isoladamente, o querer ou não participar nesta luta pelo lucro; a concorrência obriga o mais filantropo a aliar-se aos colegas e a fazer cumprir uma jornada de trabalho tão longa como a daqueles.
A luta pela limitação da jornada de trabalho data da primeira aparição dos operários livres na história e dura até aos nossos dias. Nas várias indústrias existem regras diferentes no que concerne à jornada de trabalho, mas na realidade, raramente são observadas. Só nos casos em que a lei fixa a jornada de trabalho e controla a sua observação, é que pode falar-se de uma jornada de trabalho normal. E até aqui, com poucas excepções, só nos distritos industriais de Inglaterra encontramos uma jornada de trabalho normal. A jornada de trabalho de 10 horas (10 horas e meia durante cinco dias e sete horas e meia ao Sábado) foi fixada para todas as mulheres e para os jovens entre os 13 e os 18 anos, e como os homens não podem trabalhar sem estes últimos, ficam também submetidos à lei da jornada de 10 horas. Esta lei foi conquistada pelos operários ingleses através de longos anos de perseverança, de uma luta tenaz e obstinada contra os fabricantes, pela liberdade de imprensa, pelo direito de associação e de reunião, utilizando habitualmente as divisões no seio da própria classe dominante. Essa lei transformou-se na salvaguarda dos operários ingleses, foi pouco a pouco alargada a todos os grandes ramos da indústria e, no ano passado, a quase todos os ofícios, ou pelo menos a todos os que empregam mulheres e crianças. A presente obra contém uma documentação extremamente detalhada sobre a história da regulamentação legal da jornada de trabalho na Inglaterra. O próximo Reichstag da Alemanha do Norte irá igualmente discutir uma lei sobre a indústria e, consequentemente, regular o trabalho nas fábricas. Esperamos que nenhum dos deputados que deve a sua eleição aos operários alemães, irá para a discussão dessa lei sem se ter antes familiarizado completamente com o livro de Marx. Pode obter-se muito. As divisões nas classes dominantes são muito mais favoráveis aos operários do que eram em Inglaterra, porque o sufrágio universal obriga as classes dominantes a procurar o apoio dos operários. Nestas circunstâncias, quatro ou cinco representantes do proletariado são uma potência se souberem utilizar a situação, se sobretudo souberem do que se trata, coisa que os burgueses não sabem. E, para isso, o livro de Marx fornece-lhes uma documentação já elaborada.
Deixaremos de lado uma série de investigações muito belas, de caracter teórico, e contentar-nos-emos abordando o capitulo final que trata da acumulação do capital. Prova-se nesse capitulo que o método da produção capitalista, isto é, realizado por um lado pelos capitalistas e por outro pelos assalariados, não só reproduz sempre o capital dos capitalistas, mas também produz sempre e ao mesmo tempo a miséria dos operários; e fá-lo de maneira a renovar a existência, por um lado, dos capitalistas que são os possuidores de todos os meios de subsistência, de todas as matérias-primas e de todos os instrumentos de trabalho, e, por outro lado, da grande massa dos operários que são obrigados a vender a sua força de trabalho aos capitalistas em troca de uma certa quantidade de meios de subsistência apenas suficientes, no melhor dos casos, para manter em estado de trabalhar e para fazer crescer uma nova geração de proletários aptos para o trabalho.
Mas o capital não se limita a ser reproduzido: está continuamente a ser multiplicado e a aumentar, e, ao mesmo tempo, aumenta o seu poder sobre a classe dos operários privados de propriedade. O modo de produção capitalista, enquanto se reproduz em proporções cada vez maiores, reproduz também em proporções cada vez maiores e em número crescente, a classe dos operários privados de propriedade. "...A acumulação (do capital)(5) não faz mais do que reproduzir esta relação (relação do capital) numa escala igualmente progressiva: com mais capitalistas (ou com maiores capitalistas) por um lado, e com mais assalariados por outro... Acumulação do capital é ao mesmo tempo aumento do proletariado." (6)
Mas como para fazer a mesma quantidade de produtos, são precisos cada vez menos operários, graças aos progressos trazidos pela mecanização, à modernização da agricultura, etc., como o aperfeiçoamento quer dizer, o excedente de operários, aumenta mais rapidamente do que o capital crescente, o que é que se faz deste número cada vez maior de operários? Constituem um exército de reserva para a indústria que, durante os momentos maus ou medíocres, é pago abaixo do valor do seu trabalho, encontra irregularmente emprego ou vive da assistência pública, mas é indispensável à classe capitalista nos momentos de actividade particularmente grande como se viu em Inglaterra - mas que, de qualquer modo, serve para quebrar as forças de resistência dos operários com trabalho regular e para manter os salários a baixo nível. "O exército industrial de reserva é tanto mais numeroso quanto a riqueza social...(é) mais considerável... Mas quanto mais aumentar este exército de reserva comparativamente ao exército activo do trabalho, mais a sobrepopulação aumenta, excedente este cuja miséria é inversamente proporcional aos tormentos do trabalho. Quanto mais crescer esta camada de Lázaros da classe assalariada, mais cresce a pauperização oficial. É esta a lei absoluta e geral da acumulação capitalista."(7)
Tais são, provadas de uma maneira rigorosamente científica - e os economistas oficiais bem evitam quanto mais não seja refutá-las - algumas das principais leis do sistema social do capitalismo moderno. E teríamos dito tudo? Nada disso. Com a mesma clareza com que sublinha os lados maus da produção capitalista, Marx prova o carácter necessário desta formação social para o desenvolvimento das forças produtivas até ao grau tal que permitisse um desenvolvimento verdadeiramente humano e igual para todos os membros da sociedade. As formações sociais anteriores foram demasiadamente pobres para isso. Só a produção capitalista cria as riquezas e as forças produtivas necessárias para tal, criando ao mesmo tempo, com a massa dos operários oprimidos, a classe social que cada vez mais é obrigada a reivindicar a utilização dessas riquezas e dessas forças produtivas em favor de toda a sociedade e não, como acontece hoje, em favor de uma classe monopolista.
Notas:
1. Publicado em Leipzig nos números 12 e 13 de 21 e 28 de Março de 1868 do Democratisches Wochenblatt.
2. Gros é a tradução francesa de Groschen, subunidade do thaler (30 Groschen = 1 thaler).
3. A corveira, do termo francês corvée (du paysan), é a tradução do alemão Frondienst, e representa o pagamento em trabalho obrigatório e gratuito devido pelo servo da gleba ao seu senhor.
4. Karl Marx, Le Capital, livro I, p. 231, Editions Sociales, Paris, 1959.
5. As palavras que aparecem entre parênteses foram introduzidas por Engels.
6. Karl Marx, Le Capital, livro I tomo III, p. 55, Editions Sociales, Paris, 1962.
7. Karl Marx, Le Capital, livro I, tomo III, p. 87