PANEGÍRICO

Guy Debord

PANEGÍRICO

III

«Foi-me dado observar, na maior parte de quantos deixaram Memórias, que só nos mostraram claramente as suas más acções ou inclinações ruins quando porventura as tomaram por proezas ou bons instintos, coisa que às vezes sucedeu.»

Alexis de Tocqueville

Souvenirs

Após as circunstâncias que acabo de lembrar, aquilo que sem dúvida me marcou a vida inteira foi o hábito de beber, cedo contraído. Os vinhos, os álcoois e as cervejas; os momentos em que certas dessas bebidas se impunham e os momentos em que simplesmente surgiam, foram-me delineando o fluxo principal e os meandros dos dias, das semanas, e dos anos. Duas ou três paixões, que irei contar, guardaram de modo mais ou menos permanente um grande lugar na minha vida. Mas foi esta a mais constante e a mais presente. No reduzido número das coisas que me agradaram, e que soube fazer bem, aquilo que per certo fiz melhor foi beber. Embora tenha lido muito, bebi mais. Escrevi muito menos do que a maior parte das pessoas que escrevem; mas bebi muito mais que a maioria das pessoas que bebem. Bem posso incluir-me entre aqueles de quem Baltasar Gracián pode um dia dizer, ao pensar num escol so distinguido entre alemães - neste ponto muito injusto para com os franceses, come julgo tê-lo mostrado: «Há-os que só uma vez se embebedaram, porém toda a vida Ihes durou.»

Eu que com tanta frequência tive de ler a meu respeito as calunias mais extravagantes ou muito injustas criticas, sinto aliás certa surpresa por ver que afinal se passaram trinta anos, e até mais, sem que alguma vez um descontente tenha utilizado a minha bebedeira à laia de argumento, pelo menos implícito, contra as minhas ideias escandalosas; com excepção, de resto única e tardia, de um escrito dado a lume por uns jovens drogados, em Inglaterra, no qual revelavam, per volta de 1980, que doravante eu estava embrutecido pelo álcool e que, per conseguinte, deixara de causar dano. Nunca me passou pela cabeça dissimular esta feição talvez contestável da minha personalidade, feição esta indubitável para todos quantos me tenham visto mais de uma ou duas vezes. Posso até assinalar que em todas as ocasiões bastaram poucos dias para me ver grandemente estimado, fosse em Veneza ou em Cádis, em Hamburgo ou em Lisboa, pelas pessoas que só por frequentar certos cafés fui conhecendo.

Comecei per apreciar, como toda a gente, o efeito da ligeira embriaguez, e depois, rapidamente, apreciei o que fica para além da violenta ebriedade, ao transpor-se esse estádio: uma paz magnifica e terrível o autêntico sabor da passagem do tempo. Embora talvez aparentando apenas, nas primeiras décadas, ligeiros sinais uma ou duas vezes por semana, é um facto que andei continuamente bêbedo ao longo de períodos de vários meses; sendo certo e seguro que no resto do tempo bebia muito.

Um ar de desordem, na grande variedade das garrafas exauridas, é mesmo assim susceptível, a posteriori, de uma classificação. Posso começar por distinguir entre as bebidas que bebi nos países de origem e as que bebi em Paris; mas na Paris de meados do século havia quase de tudo no que tange a bebidas. Os lugares por toda a parte, podem subdividir-se simplesmente entre o que bebia em casa; em casa dos amigos; nos cafés, nas adegas, nos bares, nos restaurantes; ou na rua, nomeadamente nas esplanadas.

As horas e as suas condições variáveis exercem quase sempre papel determinante na renovação necessária dos momentos em que se dá uma entrega à bebida, suscitando cada um desses instantes a sua razoável preferência por entre as possibilidades que se vão apresentando. Há aquilo que se bebe de manhã, e durante muito tempo esse foi o momento das cervejas. Em Bairro de Lata, certa personagem, na qual se pode detectar um entendido, professa que «de manhã, nada há melhor que a cerveja». Mas amiúde necessitei, ao acordar, de vodka da Rússia. Há aquilo que se bebe às refeições, e durante as tardes que entre elas se estendem Há vinho das noites, com os seus álcoois, e depois deles as cervejas ainda são aprazíveis; porque a cerveja então dá sede. Há o que se bebe ao fim da noite, na altura em que o dia recomeça. É fácil conjecturar que todas essas ocupações bem pouco tempo me deixaram para escrever, e é isso justamente o que convém: a escrita deve manter-se rara, pois antes depararmos com o excelente, impõe-se termos bebido durante muito tempo.

Vagueei bastante por várias cidades da Europa, nelas apreciando tudo quanto merecia sê-lo. O catálogo, em tal matéria, poderá ser vasto. Havia as cervejas de Inglaterra, onde se misturavam as enormes canecas de Munique; e as Irlandesas; e a mais clássica, a cerveja checa de Pilzen; e o admirável barroquismo da Gueuze, nos arrabaldes de Bruxelas, quando ainda possuía sabor distinto em cada cervejaria artesanal e não suportava ver-se transportada para longe. Havia os álcoois de frutas da Alsácia; o rum da Jamaica; os ponches, a akuavit de Aalborg, e a grappa de Turim, o conhaque, os cocktails; o incomparável mescal do México. Havia todos os vinhos de França, sendo os molhores os da Borgonha; havia os vinhos de Itália, e sobretudo o Barolo das Langhe, os Chianti da Toscânia; havia os vinhos de Espanha, os Rioja de Castilla-la-Vieja ou o Jumilla Mlúrcia.

Bem poucas doenças teria eu tido, caso o álcool, aos poucos, me não fosse legando algumas: das insónias às vertigens, passando pela gota. «Belo como a tremura das mãos no alcoolismo», diz Lautréamont. Há manhãs comoventes, mas difíceis.

«Mais vale esconder o desatino; na devassidão, porém, e na ebriez, não será fácil, podia Heraclito pensar. E no entanto, escrevia Maquiavel a Francesco Vettori: «Viesse alguém a enxergar as nossas cartas... e nossa feição o primeira seria a de gente circunspecta, a tão magnos negócios dedicada que em nossos corações só tenções de honor e de grandeza caberiam. Em seguida, porém, virando a página, nós ambos, esta gente mesmíssima, aos olhos desse alguém semelharia ligeira, inconstante, putanheira, e de todo consagrada à presunção. E posto que alguém tal conduta haja na conta de indigna, por mim a julgo eu laudável, pois natura imitamos, que é inconstante.» Vauvenargues formulou uma regra muito esquecida: «Para sentenciar que um autor se contradiz, impõe-se que Ihe seja impossível chegar a conciliação consigo mesmo.»

Algumas das minhas razões de beber são aliás dignas de estima. Tal como Li Po, bem posse alardear esta nobre satisfação: «Há trinta anos que escondo a minha fama nas tavernas.»

A maioria dos vinhos, quase todos os álcoois e a totalidade das cervejas cuja lembrança evoquei, perderam hoje em dia inteiramente os seus sabores, primeiro no mercado mundial, e depois localmente; devido aos progressos da indústria, e também ao movimento que conduz ao sumiço ou à reeducação económica das classes sociais durante muito tempo independentes da grande produção industrial; e graças, por conseguinte, à aplicação dos diversos regulamentos estatais, que doravante proíbem quase tudo o que não for fabricado industrialmente. As garrafas, para continuarem a ser vendidas, fielmente conservaram os rótulos, assim expondo nessa exactidão a garantia de poderem ser fotografadas tais quais eram; mas não a de bebê-las.

Nem eu nem as pessoas que comigo beberam alguma vez nos sentimos incomodados com os nossos excessos. «No banquete da vida», ao menos aí bons convivas, nos sentáramos sem pensar um só instante que tudo quanto tão prodigamente ingeríamos mais tarde não seria renovado para aqueles que depois de nós viriam. Tanto quanto memória de bêbedo consinta, jamais se havia imaginado como coisa possível isto de desaparecerem do mundo, antes do bebedor, as próprias bebidas.

IV

«Certo é que Júlio César seus feitos redigiu; porém a modéstia deste herói nele igualha o valor dos comentários; pois parece haver somente executado aquela obra para tirar à adulação a veleidade de poder impressionar com sua história os séculos futuros.» Baltasar Gracián

El Hombre Universal



Por conseguinte, conheci bastante o mundo; a sua história e a sua geografia; os seus cenários e os seres que os povoavam; as suas práticas diversas, e nomeadamente «o que é a soberania, quantas espécies tem, come se alcança, como se conserva, come se perde».

Não precisei de viajar para muito longe, mas encarei as coisas cem certa profundidade, Sempre Ihes concedendo a plena dimensão de meses ou de anos que me pareciam ter.

A maior parte do tempo morei em Paris, e adentro, precisamente, dum triângulo definido pela intersecção da rua de Saint-Jacques com a rua Royer-Collard; pela da rua de Saint-Martin com a rua Greneta; pela da rua do Bac com a rua de Commailles. E efectivamente passei os dias e as noites neste espaço restrito, e também na estreita margem-fronteira que imediatamente o prolongava; as mais das vezes na sua face leste, mais raramente na face noroeste.

Nunca ou quase nunca teria saído desta zona, que na perfeição me conveio, caso certas necessidades históricas me não houvessem, per várias vezes, obrigado a fazê-lo. Sempre per pouco tempo durante a juventude, quando tive de arriscar algumas curtas incursões ao estrangeiro, para levar mais longe a perturbação; depois, porém, de bem mais demorado modo, quando a cidade foi devastada e integralmente destruído o género de vida que nela se levava. Acontecendo isso após 1970.

Julgo que esta cidade foi devastada um pouco antes de todas as outras; decerto porque as suas revoluções sempre renovadas muito haviam inquietado e ofendido o mundo; e porque desgraçadamente todas haviam fracassado Fomos pois punidos, por fim, com uma destruição tão completa como aquela com que outrora nos haviam ameaçado o Manifesto de Brunswick ou o discurso do girondino Isnard: com vista a enterrar tantas lembranças temíveis, e o nome grande de Paris. (O infame Isnard, ao presidir a Convenção, em Maio de 1793, já tivera a impudência de prematuramente anunciar: «Se, repito, com estas insurreições constantemente a renascer se chegar ao cúmulo de atingir a representação nacional - a vós declaro, em nome da França inteira, que Paris será destruída; e prontamente, pelas margens do Sena, se há-de indagar se esta urbe existiu.»)

Quem vê as margens do Sena, há-de ver as nossas penas; ali se cruzam agora tão-somente as precipitadas colunas dum formigueiro de escravos motorizados. O historiador Guichardin, que viveu o fim da liberdade em Florença, notou no seu Memento: «Todas as cidades, todos os Estados e todos os reinos são mortais; todas as coisas, por natureza ou acidente, um dia ou outro hão-de chegar ao fim, e têm de acabar; assim sendo o cidadão que veja a pátria ruir, nem por isso deve desolar-se ante o revés da pátria e o infortúnio que a atinge; mas antes chorar a sua própria desgraça; porque à cidade sucedeu o que era forçoso acontecer, ao passo que a verdadeira desgraça foi a sua: a de nascer na altura em que semelhante desastre eclodia.»

Quase poderia julgar-se, apesar de tantíssimos testemunhos anteriores da história e das artes, que fora eu o único a amar Paris; pois a princípio vi-me sozinho reagir a tal questão, nesses repugnantes «anos 70». Mas depois soube que Louis Chevalier, seu velho historiador, havia então publicado, disso se falando pouco, L’Assassinat de Paris. De modo que nesta cidade pelo menos houve dois justos, nessa altura. Não quis encarar por mais tempo o declínio de Paris. Mais geralmente, convirá que se atribua bem pouca importância à opinião dos que condenam qualquer coisa, não fazendo tudo quanto se imponha para a aniquilar; ou, pelo menos, para se mostrarem perante ela tão estrangeiros quanto deveras ainda for possível.

Notava Chateaubriand, afinal com bastante rigor: «Dentre os modernos autores franceses do meu tempo, sou também o único cuja vida se assemelha às obras.» Quanto a mim, sem dúvida vivi come disse que deveria viver-se; e isto talvez haja sido ainda mais estranho entre as pessoas do meu tempo, visto todas elas parecerem acreditar que deviam limitar-se a viver segundo as instruções dos que comandam a presente produção económica e a força de comunicação com que esta se armou. Morei na Itália e na Espanha, e principalmente em Florença e Sevilha - em Babilónia, como no Século d’Ouro se dizia -, mas também noutras cidades que ainda viviam, e até no campo. Ganhei assim uns anos aprazíveis. Muito mais tarde, quando a maré dos destroços, poluições e falsificações acabou por cobrir a face do Inundo, ao mesmo tempo que profundamente neste ia penetrando, pude voltar às subsistentes ruínas de Paris, visto nada melhor fora dela haver resistido. Num mundo unificado, o exílio é impossível.

Que terei eu feito então, durante esse tempo? Não fiz grande questão de me afastar de certos encontros arriscados; sendo até provável, no tocante a alguns, que a eles me dirigi com sangue-frio.

Na Itália, nem por toda a gente certamente fui bem visto; mas pude ditosamente conhecer as «sfacciate donne fiorentine», na época em que vivi em Florença, no bairro de Além-Arno. Por lá andava então aquela jovem florentina, a quão graciosa. À noite atravessava o rio para vir a San Frediano. Bem inopinadamente por ela me apaixonei, quem sabe se por causa dum belo sorriso amargo. E em suma Ihe disse: «Não guardeis silêncio; pois ante vós como estrangeiro sou, e viandante. Dai-me algum refrigério, antes que parta e de todo cesse.» Foi também porque nessa altura, e mais uma vez, a Itália se perdia; era preciso voltar a adoptar distância suficiente das cadeias onde ficaram aqueles que por demais se haviam demorado nas festas de Florença.

O jovem Musset fez-se notar outrora com aquela sua questão irreflectida: «Pois vistes vós, em Barcelona, / uma andaluza de trigueiro peito?» Assim é!, tenho eu de responder desde 1980. Partilhei as loucuras da Espanha, e nessa possivelmente a maior. Fora porém noutro pais que esta fatal princesa aparecera, com aquela selvagem formosura, e aquela voz. Mira come vengo yo», assim deveras dizia a canção que ela entoava. Não a ouvimos mais, nesse dia. E durante muito tempo amei esta andaluza. Quanto? «Um tempo proporcional à nossa duração e mesquinha», di-lo Pascal.

Cheguei até a morar numa casa inacessível, rodeada de bosques, longe de aldeias, em região extremamente estéril de montanha consumida, nas lonjuras duma Auvergne ao abandono. Lá passei alguns invernos. Durante dias inteiros a neve caía sem parar. E o vento em montículos a juntava. Desta neve estava a estrada protegida por valados, mas no pátio, apesar do muro, ia-se amontoando. Cepos ardiam juntos na lareira.

A casa parecia abrir-se directamente para a Via Láctea. À noite, as estrelas próximas, que num dado momento eram intenso brilho, logo a seguir podiam apagar-se, ante a passagem duma ligeira bruma. São-no também assim, as nossas conversas, as festas, os encontros, as nossas paixões tenazes.

Era uma região de trovoadas. Iam-se chegando sem ruído, anunciadas pela rápida passagem de um vento que corria junto a erva, ou por uma serie de repentinas iluminações do horizonte; e logo desencadeavam o trovão e o raio, que se lançavam então num canhoneio largo e duradouro, cercando a casa, fortaleza sitiada. Só uma vez, de noite, vi cair um raio perto de mim, lá fora: nem se pode perceber onde ele embate; a paisagem toda fica iluminada por igual, no espaço dum instante assombroso. Nada na arte me pareceu alguma vez exprimir esta impressão do estrépito sem retorno, com excepção da prosa que Lautréamont empregou na programática enunciação intitulada Poesias. Mas mais nada: nem a página em branco de Mallarmé, nem o quadrado branco em fundo branco de Malévitch, e nem sequer os derradeiros quadros de Goya, aqueles em que o negro invade tudo, come Saturno a devorar os filhos.

Ventos violentos, que a todo o instante podiam erguer-se em três frentes, sacudiam as árvores. As da charneca, a norte, mais disperses, curvavam-se e iam rangendo como navios ancorados, surpresos em enseada aberta. As árvores que defronte da casa guardavam o outeiro, muito agrupadas, umas às outras se apoiavam naquela resistência, aguentando a primeira fila a investida logo renovada do vento de oeste. Mais longe dali, o alinhamento dos bosques dispostos em quadrados, em todo o semicírculo de colinas, evocava as tropas perfiladas num campo de batalha, tal como surgem em certos quadros de pelejas do século XVIII. E estas cargas, quase sempre vãs, às vezes abriam brecha, fazendo soçobrar uma fileira. Nuvens acumuladas cruzavam o amplo céu em correria. Uma mudança súbita do vento com a mesma celeridade as punha em fuga; e outras nuvens se lançavam empós delas.

Estavam também presentes, nas manhãs calmas, todos os pássaros que contém madrugada, a perfeita fresquidão do ar, e um luzente matiz de brando verde que vinha sobre as árvores, à encrespada luz do Sol nascente, ali diante delas.

Insensivelmente passavam as semanas. O matutino ar, um belo dia, anunciava o Outono. De outra vez na grande e desfraldada doçura daquele ar que a boca sente, surgia, qual rápida promessa nunca esquecida, «o sopro da Primavera».

A propósito de alguém como eu, que tão essencialmente sempre foi homem de ruas e cidades - aprecie-se nisto de que maneira as preferências me não vêm desfigurar as apreciações -, convirá assinalar não me terem passado despercebidos o encanto e a harmonia dessas poucas estações de grandioso isolamento. Era uma agradável e impressionante solidão. E na verdade não estava ali sozinho; mas sim com a Alice.

A meados do Inverno de 1988, de noite, na praceta das Missões Estrangeiras, uma certa coruja repetia obstinadamente os seus apelos, enganada talvez pela desordem do clima. E a insólita série destes encontros com a ave de Minerva, com seu ar de surpresa e indignação, de maneira nenhuma me pareceram constituir uma alusão à conduta imprudente ou aos variegados desvarios da minha vida. Nunca entendi como poderia ser outra, nem como deveria alguma vez ser justificada.



V

«Visto eu ser um letrado, um homem realmente culto, e a este titulo um gentlemen, imagino que bem posso considerar-me membro indigno desta mal definida classe que compõem os "gentlemen". É essa a opinião dos meus vizinhos, em parte, talvez, pelas razões adiantadas, e em parte porque me não vêem exercer profissão nenhuma nem comércio».

Thomas de Quincey

Confissões de um Opiómano Inglês



Um conjunto de circunstâncias acabou per por em quase tudo o que fiz uma certa aparência de conspiração. Já nesta época muitas novas profissões eram criadas, a poder de grandes cabedais, com o único fim de mostrarem a quanta beleza recentemente se guindara a sociedade, alardeando, em simultâneo, como ela raciocinava com justeza em todos os seus discursos e projectos. Ora eu, sem salário, dava o exemplo de procedimentos muitíssimo contrários; coisa que per força se viu pouco apreciada. Levou-me também isso a conhecer, em países vários, pessoas muito justamente consideradas perdidas. E as policias vigiam-nas. Este especial pensamento que podemos encarar como a forma de conhecimento da policia, exprimia-se assim em 1984, a meu respeito, no Journal du Dimanche de 18 de Março: «Para muitos policias, quer sejam da "crime", da D.S.T. ou dos Renseignements Généraux, a pista mais séria leva ao circulo de Guy Debord... O mínimo que se pode dizer é que, fiel à lenda que o rodeia, Guy Debord se mostrou muito pouco falador.» Mas já antes disso, no Nouvel Observateur de 22 de Maio de 1972: «O autor d’A Sociedade do Espectáculo sempre foi tido como o cérebro, discreto mas incontestável... no centro da constelação variável dos brilhantes conjurados subversivos da I.S., uma espécie de frio jogador de xadrez, conduzindo com rigor... a partida em que previu todos os lances. Congregando à sua volta, com velada autoridade, os talentos e as boas vontades. E desagregando-os depois, com o mesmo virtuosismo negligente, manobrando os acólitos como pedes ingénuos, a cada jogada desbravando o terreno, vendo-se por fim senhor absoluto, e sempre a dominar o jogo».

A minha maneira de ser faz-me sentir um espanto imediato ante tais coisas, mas deverá reconhecer-se que muitas experiências da vida afinal se limitam a verificar e ilustrar as ideias mais convencionais, com as quais já topáramos em muitos livros, sem nelas, apesar disso, acreditarmos. Evocando aquilo que uma pessoa pôde saber per si, não será portanto absolutamente necessário investigar a observação nunca feita ou o paradoxo inesperado. É neste sentido que devo à verdade assinalar, depois de outros, que a policia inglesa me pareceu a mais desconfiada e a mais polida, a francesa a mais perigosamente adestrada na interpretação histórica, a italiana a mais cínica, a belga a mais rústica, a alemã a mais arrogante; sendo a policia espanhola a que ainda se mostrava menos racional e mais incapaz.

Constitui em geral sinistra provação, para um autor que escreva em certo grau qualitativo e por isso perceba o sentido da alusão, ter de reler e consentir assinar as suas próprias respostas num processo-verbal da policia judiciária. Antes de mais, o conjunto do discurso é determinado pelas perguntas dos investigadores, que quase sempre nele nem sequer são mencionadas; nem inocentemente decorrem, como às vezes pretendem fazer crer, das meras necessidades lógicas duma informação exacta, ou duma clara compreensão. As respostas que em tais condições tenha sido possível formular, de facto em nada são melhores que o seu resumo, ditado pelo mais graduado dos policias presentes, redigidas com bastante inépcia aparente e repletas de elementos vagos. Naturalmente, embora muitos inocentes o ignorem, se for imperativo fazer rectificar com precisão todo e qualquer pormenor em que se veja traduzida, com deplorável infidelidade, a ideia que tenhamos exprimido, depressa será preciso renunciar a mandar transcrevê-la do modo conveniente e satisfat6rio que antes espontaneamente empregáramos, pois em tal caso ver-nos-íamos arrastados a duplicar o número destas horas já de si extenuantes coisa que ao mais purista acabaria por tirar a vontade de a tal ponto o ser. Declaro aqui, por conseguinte, que as minhas respostas às policias Não deverão mais tarde ser-me editadas nas obras completas, com base em escrúpulos formais, e isso apesar de eu ter assinado sem tortura o verídico conteúdo ali exarado.

Possuindo eu sem dúvida, graças a uma das raras características positivas da minha primeira educação, o sentido da discrição, vi-me per vezes na necessidade de dar provas de discrição maior ainda. Muitos hábitos úteis se foram assim tornando para mim uma segunda natureza, direi eu para em nada ceder aos malquerentes, talvez capazes de pretender que tudo isso em nada poderá distinguir-se da minha própria natureza. Fosse em que matéria fosse, quanto maiores eram as probabilidades de ser ouvido, mais eu me aplicava a ser desinteressante. Também nalguns casos marquei encontros ou dei opinião em cartas pessoalmente endereçadas a amigos, modestamente as assinando com nomes pouco conhecidos que figuravam nos círculos de alguns poetas famosos: Colin Decayeux ou Guido Cavalcanti, por exemplo. Mas nunca me baixei, e isto é uma evidência, a publicar fosse o que fosse com pseudónimo, apesar do que por vezes puderam insinuar na imprensa alguns caluniadores estipendiados, com um atrevimento extraordinário mas limitando-se também prudentemente, mais abstracta generalidade.

Perguntar-se-á, embora isso não seja desejável, que poderia ir assim positivamente carreando o tão firmado propósito de vir desmentir todas as autoridades? «Nunca buscamos as coisas, mas sim a busca das coisas»; a este propósito a certeza está desde há muito estabelecida. «Gostamos mais da caça que da presa...»

A nossa época de técnicos emprega abundantemente um adjectivo substantivado, o de «profissional»; e parece acreditar que com isso oferece uma espécie de garantia. Se não se encararem, come é óbvio, os meus emolumentos, mas tão-só as minhas competências, ninguém poderá duvidar que fui um muito bom profissional. Mas de quê? Esse terá sido o meu mistério, aos olhos dum mundo execrável.

Concluíam os Srs. Blin, Chavanne e Drago, que em parceria publicaram, em 1969, um Traité du Droit de la Presse no capítulo respeitante ao «Perigo das Apologias», com autoridade e experiência tais que felizmente me levam a pensar dever-se-lhes atribuir lata confiança: «Fazer a apologia de um acto delituoso, apresenta-lo como glorioso, meritório ou lícito, pode ter considerável poder de persuasão. Os indivíduos de vontade débil, lendo tais apologias, sentir-se-ão não só previamente absolvidos, caso venham a cometer actos similares, come verão também no seu cometimento a ocasião de se tornarem personagens. O conhecimento da psicologia criminal expõe assim o perigo das apologias.»

VI

«E quando penso que estas pessoas caminham lado a lado, numa jornada quão longa e penosa, com vista a juntas atingirem um mesmo lugar aonde irão correr perigos sem conta, por via de alcançarem uma meta grande e nobre, as presentes reflexões conferem a este panorama um sentido que profundamente me comove.»

Carl von Clausewitz

Carta de 18 de Setembro de 1806



Interessei-me muito pela guerra, pelos teóricos da estratégica, mas também pelas memórias de batalhas ou de tantos outros tumultos que a história menciona, remoinhos na superfície do rio por onde o tempo se escoa. Não ignoro ser a guerra a matéria mesma do perigo e da decepção; mais até porventura que as restantes feições da vida. Este argumento, porém, nem por isso diminui a atracção que senti precisamente por ela.

Estudei, por conseguinte, a lógica da guerra. Consegui, de resto, já há bastante tempo, expor o essencial dos seus movimentos num campo de batalha muito simples: as forças que se confrontam, bem como as necessidades contraditórias que às operações de cada um dos partidos se vão impondo. Joguei a esse jogo e empreguei até, na condução amiúde difícil da minha vida, alguns ensinamentos dele extraídos - para esta vida, tinha também fixado uma regra do jogo; e respeitei-a. As surpresas deste Kriegspiel parecem inesgotáveis; sendo quiçá a única das minhas obras, bem o receio, a que serão capazes de reconhecer algum valor. Quanto à questão de saber se fiz boa serventia de tais ensinamentos, a conclusão deixo-a a outros.

Temos de convir que nós, os que pudemos compor portentos com a escrita, com frequência demos mais débeis provas de domínio no comando da guerra. Os infortúnios e os ressaibos, neste terreno, são provações sem conta. O capitão Vauvenargues, na retirada de Praga, com as tropas levadas pela pressa, caminhava na única direcção ainda aberta. «A fome e a desordem avançam na sua peugada fugitiva; a noite envolve-lhes os passos, e segue-os a morte em silêncio... Fogueiras acesas sobre o gelo alumiam-lhes os instantes derradeiros; temível cama Ihes prepara a terra.» E Gondi sentiu a aflição de ver tão de repente mudar de ideias, na ponte de Anthony, o regimento que acabara de sublevar; a dor de ouvir comentar tal debandada como a «Primeira aos Corintios». E Carlos de Orleães estava na vanguarda, naquele desgraçado ataque de Azincourt, crivada de frechas ao longo do percurso e por fim destroçada, ali onde se viu «toda a nobre cavalaria, garbo de França, que, comparada aos ingleses, era de dez contra um, falecer desbaratada»; teve de quedar-se vinte e cinco anos cativo em Inglaterra, e ao regressar bem pouco apreciou os modos duma outra geração («De mim está enfadado o mundo, - e eu dele outro tanto»). E Tucídides, com a esquadra debaixo do seu comando, tristemente chegou com atraso de algumas horas para impedir a queda de Anfípolis; só pode evitar as grandes consequências do desastre lançando para Egione a infantaria embarcada, cuja fortaleza assim salvou. O próprio tenente von Clausewitz, com aquele admirável exército a caminho de Iena, estava longe de conjecturar o que lá se daria.

Mas ainda assim o capitão Saint-Simon, na batalha de Neerwinden, no Royal-Roussillon, com donaire participou nas cinco cargas da cavalaria, antes exposta, imóvel, ao fogo dos canhões inimigos, cujas pesadas balas varriam homens às filas; enquanto se iam realinhando os renques da «insolente nação». E Stendhal, alferes no 6º Regimento de Dragões, em Itália, chegou a arrebatar uma bateria austríaca. Cervantes, na altura em que se disputava a batalha de Lepante, mostrou-se inquebrantável sustentando, à testa de doze homens, o derradeiro reduto da sua galera, vindo os turcos à abordagem. Diz-se que Arquíloco de profissão era soldado. E Dante, ao arremeterem os cavaleiros de Florença sobre Campaldino, ali matou gente, e com isso folgava ainda ao evocá-lo no canto quinto do Purgatório: «E pois Ihe disse: que força ou que destino / tão longe te extraviou de Campaldino / que nunca teu sepulcro foi sabido?»

A história é comovente. Se acaso os melhores autores que nas suas lutas entraram, nessa matéria às vezes desempenharam menos excelente papel que nos escritos, ela, em contrapartida, para nos transmitir as paixões que são as suas, sempre deparou com quem tinha o sentido da fórmula bem azada. «A Vendeia acabou», escrevia o general Westermann à Convenção, em Novembro de 1793, após a vitória de Savenay. «Morreu debaixo do nosso sabre, com as mulheres e os filhos. Acabo de a enterrar nos pauis e matagais de Savenay. Esmaguei a criançada com os cascos dos cavalos, chacinei as mulheres, e essas ao menos já não hão-de parir mais salteadores. Não tenho um só prisioneiro a censurar-me. Tudo assim exterminei... Não fazemos prisioneiros, pois preciso seria dar-lhes o pão da liberdade, e não é revolucionária a piedade.» Uns meses depois, Westermann será executado com os dantonistas, todos eles aviltados com o nome de «Indulgentes». Poucos dias antes da insurreição de 10 de Agosto de 1792, um oficial da guarda suíça, dessa tropa que restava dentre os defensores da pessoa do monarca, também sinceramente havia exprimido, numa carta, o sentimento dos seus camaradas: «Todos assim o declarámos, caso funesto acidente venha a atingir el-rei, não havendo ao menos seiscentos uniformes encarnados estendidos por terra, esse será o nosso opróbrio.» Foram um pouco mais de seiscentos os que acabaram per cair, quando o mesmo Westermann, que de inicio tentara neutralizar os soldados avançando sozinho no meio deles, nas escadarias do rei, falando-lhes em alemão, por fim compreendeu que a única coisa a fazer era atacar em força.

Na Vendeia que continuava a combater, um Canto em Prol da União dos Chouans em Caso de Derrota clamava com a mesma obstinação: «Um só tempo vivemos / à honra o consagremos / em frente levando seu estandarte...» Na revolução mexicana, cantavam os partidários de Francisco Villa: «Desta famosa divisão do Norte / somos agora um pequeno punhado / sempre cruzando estas serras à sorte / p’ra lutar co’inimigo em todo o lado.» E os voluntárias norte-americanos do batalhão Lincoln, em 1937, assim cantaram: «Há em Espanha um vale chamado Jarama / E é zona de nós por demais conhecida / A nossa mocidade perdeu lá toda a chama / e até a velhice se viu lá consumida.» Uma canção dos alemães da Legião Estrangeira exprime uma melancolia mais solta: «Ana Maria, mundo fora aonde vais? / Vou g cidade onde a tropa se quede.» Montaigne tinha as suas citações; eu tenho as minhas. Há um passado que distingue os soldados, mas nenhum future. É assim que as suas canções podem comover-nos.

Pierre Mac Orlan, em Villes, evocou o ataque de Bouchavesne, entregue aos moços tunantes que serviam no exército francês, esses que a lei despejava nos batalhões africanos da infantaria ligeira: «Na estrada de Bapaume, não longe de Bouchavesne e de Rancourt, onde o rancho dos Galhofeiros, ao subir àquele morro da mata dos Berlingots, em poucas horas resgatou os pecados todos, divisava-se já a pelagem desfeita da Picardia.» Nos pendores contrários da frase, dum tão hábil descuido, por cima dos quais se pode enxergar o dito outeiro, distinguia-se a memória e os seus sentidos sobrepostos.

Heródoto relata que no desfiladeiro das Termópilas, onde as tropas que Leónidas conduzia se viram dizimadas no desfecho da sua útil acção para atrasar o inimigo, ao lado das inscrições que evocam o combate sem esperança de «quatro mil homens vindos do Peloponeso·, ou o dos Trezentos, que no dizer de Esparta «dóceis às suas ordens» ali jazem, o adivinho Megistio ficou glorificado com singular epitáfio: «Adivinho, ciente conhecia que a morte ali esperava / e não quis desamparar o caudilho de Esparta.» Não é preciso uma pessoa ter o dom da adivinhação para saber que qualquer posição, por melhor que se apresente, pode vir a ser torneada com forças muito superiores; e ser até submersa num ataque frontal. Em certos casos, contudo, convém mostrarmo-nos indiferentes a este tipo de conhecimentos. O mundo da guerra tem pelo menos a vantagem de não tolerar as néscias tagarelices do optimismo. É sobejamente sabido que no fim vão todos morrer. Por mais excelente que no resto seja a defesa, e conforme mais ou menos diz Pascal, «o último acto é sangrento.»

Que descoberta poderia esperar-se em tal domínio? O telegrama remetido pelo rei da Prússia à rainha Augusta, na noite da batalha de Saint-Privat, resume a maioria das guerras: «As tropas deram provas de prodígios de valor contra um inimigo de igual bravura.» É conhecido o curto texto da ordem, expeditamente proferida por um oficial, que enviou para a morte a Brigada Ligeira, a 25 de Outubro de 1854, em Balaklava: «Lorde Raglan deseja que a cavalaria avance sem tardar para a frente de combate e impeça o inimigo de evacuar os canhões...» A redacção da dita ordem é sem dúvida um pouco imprecisa, mas seja come for nada tem de mais obscuro ou erróneo que a chusma de pianos e ordens que foram capazes de guiar empreendimentos históricos para os seus incertos fins, ou para um desenlace infalivelmente funesto. É caricato ver os ares de superioridade que afivelam os pensadores do jornalismo e da Universidade, quando se Ihes depara o ensejo de opinar acerca do que foram certos planos de operações militares. Sendo o resultado obviamente já conhecido, estes pensadores precisam pelo menos dum triunfo no terreno para se dignarem abster-se de ásperas zombarias; e para não passarem, portanto, de observações a propósito do excessivo preço em sangue e das relativas limitações do êxito alcançado, comparado a outros que a seu ver teriam sido possíveis naquele mesmíssimo dia, caso se houvessem adoptado medidas mais inteligentes. São os mesmos que invariavelmente e com grande respeito ouviram as piores cabeças ocas da tecnologia e as quimeras todas da economia, sem sequer pensarem ir ver os resultados .

Masséna estava com cinquenta e sete anos feitos quando declarou que o mando consome, ao falar perante o estado-maior, na altura em que fora encarregado de dirigir a conquista de Portugal: «Em nosso oficio não se vive duas vezes, e assim é na Terra inteira, seja onde for.» O tempo não espera. Não se defende Génova duas vezes; ninguém sublevou duas vezes Paris. Xerxes, quando o seu numeroso exército ia a passar no Helesponto, formulou talvez, numa única frase, o primeiro axioma que se encontra no âmago de qualquer raciocínio estratégico, ao dizer, para explicar as lágrimas que tinha no rosto: «Estive a cismar no tão curto tempo da vida dos homens, pois desta multidão que a nossa vista alcança, nem um só viverá daqui por cem anos.»

VII

«Porém vindo estas Memórias algum dia a lume, não duvido que possam exercitar rebelião prodigiosa... e como no tempo em que escrevi, sobretudo para o fim, tudo se ia encarreirando para a decadência, para a confusão e o caos, que desde então não fez senão crescer, e não querendo estas Memórias outra coisa que não seja ordem, regra, verdade, princípios certos, e nuamente mostrando elas tudo quanto a isto é contrário e reina, cada vez mais, com a mais ignorante e a mais inteira arrogância, a convulsão há-de por força ser geral contra este espelho das verdades.»

Saint-Simon

Mémoires



Uma descrição da Vida Rural em Inglaterra, que Howitt publicou em 1840, pôde ver-se rematada dando mostras duma satisfação sem dúvida abusivamente generalizada: «Todo e qualquer homem que saiba o que são os prazeres da existência deverá agradecer aos Céus terem-lhe permitido viver neste país e neste tempo.» A nossa época, pelo contrário, não se expõe a exprimir muito enfaticamente, no tocante à vida que nela se leva, o nojo geral e o começo de pavor que em tantas áreas são sentidos. Que são sentidos, mas que nunca se exprimem antes das rebeliões sangrentas. As razões são muito simples. Os prazeres da existência foram há pouco redefinidos autoritariamente; primeiro, as respectivas prioridades, e, depois, a sua substância por inteiro. E estas autoridades, que os redefiniam, viam-se também em condições de decidir, a cada momento, sem terem de inquietar-se com quaisquer outras considerações, qual alteração mais lucrativa a introduzir nas técnicas do fabrico desses prazeres, inteiramente liberta da necessidade de agradar. Pela primeira vez, os mesmos são donos de tudo quanto se faz e de quanto se diz. Deste modo a demência «edificou sua morada no cimo da cidade».

Aos homens que não usufruíam duma tão indiscutível e universal competência, apenas se propôs, sem acrescentar o mais leve reparo, que se submetessem no tocante ao conceito que tivessem dos prazeres da existência; visto em todas as outras instâncias esses homens haverem já elegido representantes da sua submissão. E ao deixarem que Ihes suprimissem tais trivialidades, que Ihes eram apontadas como indignas de atenção, deram mostras da mesma bonomia que já antes tinham alardeado, ao verem, de mais longe, sumirem-se as poucas grandezas da vida. Quando «ser absolutamente moderno» se tomou uma lei especial proclamada pelo tirano, aquilo que o honesto escravo acima de tudo receia é que o possam suspeitar de passadista.

Mais sábios do que eu haviam muitíssimo bem explicado a origem do que veio a suceder: «O valor de troca só pôde constituir-se como agente do valor de uso, mas a vitória que alcançou com as suas próprias armas criou as condições do seu império autónomo. Mobilizando todo o uso humano e apoderando-se do monopólio da satisfação desse uso, o valor de troca acabou por dirigir o use. O processo do câmbio identificou-se assim a todo e qualquer uso possível, pondo este à sua mercê. O valor de troca é o condottiere do valor de uso, acabando por conduzir a guerra por conta própria.»

«Grande abusão é o mundo» resumia Villon num octossílabo. É um octossílabo, embora um diplomado actual não saiba provavelmente reconhecer mais de seis silabas neste verso.) A decadência geral é um meio ao serviço do império da servidão; e só nessa qualidade, sendo ela esse meio, permite que Ihe chamem progresso.

É necessário saber que a servidão quer doravante ser verdadeiramente amada em si mesma; e já não porque ofereça qualquer extrínseca vantagem. Dantes bem podia passar por protecção; mas agora não protege de coisíssima nenhuma. A servidão, agora, não procura justificar-se com a pretensão de haver conservado, seja onde for, nenhum prazer que não seja o único prazer de a conhecerem na carne.

Mais adiante direi come se desenrolaram certas fases duma outra guerra pouco conhecida: entre a tendência geral da dominação social nesta época e aquilo que, apesar de tudo e conforme é sabido, pôde vir perturbá-la .

Embora eu seja um exemplo notável do que esta época não queria, saber o que ela quis não me parece talvez suficiente para assentar a minha excelência. Swift, com muita verdade, diz no primeiro capitulo da sua História dos Quatro Últimos Anos da Rainha Ana: «E por forma nenhuma quererei com o panegírico ou a sátira misturar a História, pois minha tenção consiste tão-somente em dar informe aos vindouros, e em instruir os coevos que vivam na ignorância ou laborando em erro. Pois os factos com escrúpulo narrados firmam os maiores louvores e as mais duráveis exprobrações.» Ninguém melhor que Shakespeare soube come se passa a vida. Na sua estimação, «somos tecidos com a estofa de que os sonhos são feitos». A conclusão de Calderón é a mesma. Sinto-me pelo menos seguro de ter podido, com o que precede, transmitir elementos que muito justamente hão-de bastar para dar a perceber tudo o que sou, sem sobejar qualquer espécie de mistério ou ilusão.

O autor suspende aqui a sua história verdadeira; perdoem-lhe os erros.

Guy Debord