A MERCADORIA COMO ESPECTÁCULO

GUY DEBORD

A SOCIEDADE DO ESPECTÁCULO

CAPÍTULO II

A MERCADORIA COMO ESPECTÁCULO

Porque não é senão como categoria universal do ser social total que a mercadoria pode ser compreendida na sua essência autêntica. Não é senão neste contexto que a reificaçáo surgida da relação mercantil adquire uma significação decisiva, tanto pela evolução objectiva da sociedade como pela atitude dos homens em relação a ela, para a submissão da sua consciência às formas nas quais esta reificaçáo se exprime... Esta submissão acresce-se ainda do facto de quanto mais a racionalização e a mecanização do processo de trabalho aumentam, mais a actividade do trabalhador perde o seu carácter de actividade, para se tornar uma atitude contemplativa.

Lukács - História e consciência de classe

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Neste movimento essencial do espectáculo, que consiste em retomar em si tudo o que existia na actividade humana no estado fluido, para o possuir no estado coagulado, enquanto coisas que se tomaram o valor exclusivo pela sua formulação em negativo do valor vivido, nós reconhecemos a nossa velha inimiga que tão bem sabe parecer à primeira vista qualquer coisa de trivial e compreendendo-se por si própria, quando, pelo contrário, ela é tão complexa e tão cheia de subtilezas metafísicas, a mercadoria.

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É o princípio do fetichismo da mercadoria, a dominação da sociedade por «coisas supra-sensíveis embora sensíveis» que se realiza absolutamente no espectáculo, onde o mundo sensível se encontra substituído por uma selecção de imagens que existem acima dele, e que ao mesmo tempo se fez reconhecer como o sensível por excelência.

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O mundo ao mesmo tempo presente e ausente que o espectáculo faz ver é o mundo da mercadoria dominando tudo o que é vivido. E o mundo da mercadoria é assim mostrado como ele é, pois o seu movimento é idêntico ao afastamento dos homens entre si e face ao seu produto global.

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A perda da qualidade, tão evidente a todos os níveis da linguagem espectacular, dos objectos que ela louva e das condutas que ela regula, não faz senão traduzir os caracteres fundamentais da produção real que repudia a realidade: a forma-mercadoria é de uma ponta a outra a igualdade consigo própria, a categoria do quantitativo. É o quantitativo que ela desenvolve, e ela não se pode desenvolver senão nele.

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Este desenvolvimento que exclui o qualitativo está ele próprio submetido, enquanto desenvolvimento, à passagem qualitativa: o espectáculo significa que ele transpôs o limiar da sua própria abundância; isto ainda não é verdadeiro localmente senão em alguns pontos, mas é já verdadeiro à escala universal, que é a referência original da mercadoria, referência que o seu movimento prático confirmou, ao reunir a terra como mercado mundial.

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O desenvolvimento das forças produtivas foi a história real inconsciente que construiu e modificou as condições de existência dos grupos humanos, enquanto condições de sobrevivência, e alargamento destas condições: a base económica de todos os seus empreendimentos. O sector da mercadoria foi, no interior de uma economia natural, a constituição de um excedente de sobrevivência. A produção das mercadorias, que implica a troca de produtos variados entre produtores independentes, pode permanecer durante muito tempo artesanal, contida numa função económica marginal onde a sua verdade quantitativa está ainda encoberta. No entanto, lá onde encontrou as condições sociais do grande comércio e da acumulação dos capitais, ela apoderou-se do domínio total da economia. A economia inteira tornou-se então o que a mercadoria tinha mostra do ser no decurso desta conquista: um processo de desenvolvimento quantitativo. O alargamento incessante do poderio económico sob a forma da mercadoria, que transfigurou o trabalho humano em trabalho-mercadoria, em salariado, conduz cumulativamente a uma abundância na qual a questão primeira da sobrevivência está sem dúvida resolvida, mas de um tal modo que ela deve sempre reencontrar-se; ela é, cada vez, colocada de novo a um grau superior. O crescimento económico liberta as sociedades da pressão natural que exigia a sua luta imediata pela sobrevivência, mas é então do seu libertador que elas não estão libertas. A independência da mercadoria estendeu-se ao conjunto da economia sobre a qual ela reina. A economia transforma o mundo, mas transforma-o somente em mundo da economia. A pseudonatureza na qual o trabalho humano se alienou exige prosseguir ao infinito o seu serviço e este serviço, não sendo julgado e absolvido senão por ele próprio, obtém, de facto, a totalidade dos esforços e dos projectos socialmente lícitos, como seus servidores. A abundância das mercadorias, isto e, da relação mercantil, não pode ser mais do que a sobrevivência aumentada.

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A dominação da mercadoria exerceu-se, antes do mais, de uma maneira oculta sobre a economia, que ela própria, enquanto base material da vida social, permanecia desapercebida e incompreendida, como o familiar que apesar de tal não é conhecido. Numa sociedade em que a mercadoria concreta permanece rara ou minoritária, e dominação aparente do dinheiro que se apresenta como o emissário munido de plenos poderes que fala em nome de uma potência desconhecida. Com a revolução industrial, a divisão manufactureira do trabalho e a produção maciça para o mercado mundial, a mercadoria aparece efectivamente como uma potência que vem realmente ocupar a vida social. É então que se constitui a economia política. como ciência dominante e como ciência da dominação. O espectáculo é o momento em que a mercadoria chega à ocupação total da vida social. Não só a relação com a mercadoria é visível, como nada mais se vê senão ela: o mundo que se vê é o seu mundo. A produção económica moderna estende a sua ditadura extensiva e intensivamente. Nos lugares menos industrializados, o seu reino já está presente com algumas mercadorias-vedetas e enquanto dominação imperialista pelas zonas que estão à cabeça no desenvolvimento da produtividade. Nestas zonas avançadas, o espaço social está invadido por uma sobreposição contínua de camadas geológicas de mercadorias. Neste ponto da «segunda revolução industrial», o consumo alienado toma-se para as massas um dever suplementar produção alienada. É todo o trabalho vendido de uma sociedade, que se torna globalmente mercadoria total, cujo ciclo deve prosseguir. Para o fazer, é preciso que esta mercadoria total regresse fragmentariamente ao indivíduo fragmentário, absolutamente separado das forças produtivas operando como um conjunto. É, portanto, aqui que a ciência especializada da dominação deve por sua vez especializar-se: ela reduz-se a migalhas, em sociologia, psicotécnica, cibernética, semiologia, etc., velando à auto-regulação de todos os níveis do processo.

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Ainda que na fase primitiva da acumulação capitalista «a economia política não veja no proletário senão o operário» que deve receber o mínimo indispensável para a conservação da sua força de trabalho, sem nunca o considerar «nos seus lazeres, na sua humanidade», esta posição das ideias da classe dominante reinverte-se assim que o grau de abundância atingido na produção das mercadorias exige um excedente de colaboração do operário. Este operário, subitamente lavado do desprezo total que lhe é claramente feito saber por todas as modalidades de organização e vigilância da produção, reencontra-se, cada dia, fora desta, aparentemente tratado como uma grande pessoa, com uma delicadeza obsequiosa, sob o disfarce do consumidor. Então o humanismo da mercadoria toma a cargo os «lazeres e humanidade» do trabalhador, muito simplesmente porque a economia política pode e deve dominar, agora, estas esferas, enquanto economia política. Assim, «o renegar acabado do homem» tomou a cargo a totalidade da existência humana.

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O espectáculo é uma permanente guerra do ópio para fazer aceitar a identificação dos bens às mercadorias; e da satisfação à sobrevivência, aumentando segundo as suas próprias leis. Mas se a sobrevivência consumível é algo que deve aumentar sempre, é porque ela não cessa de conter a privação. Se não há nenhum além para a sobrevivência aumentada, nenhum ponto onde ela poderia cessar o seu crescimento, é porque ela própria não está para além da privação, mas é sim a privação tornada mais rica.

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Com a automação, que é ao mesmo tempo o sector mais avançado da indústria moderna e o modelo em que se resume perfeitamente a sua prática, é necessário que o mundo da mercadoria supere esta contradição: a instrumentação técnica que suprime objectivamente o trabalho deve, ao mesmo tempo, conservar o trabalho como mercadoria, e único lugar de nascimento da mercadoria. Para que a automação, ou qualquer outra forma menos extrema de aumento da produtividade do trabalho, não diminua efectivamente o tempo de trabalho social necessário, à escala da sociedade, é indispensável criar novos empregos. O sector terciário - os serviços - é o imenso alongamento das linhas de etapas do exército da distribuição e do elogio das mercadorias actuais; mobilização de forças supletivas que encontra oportunamente na própria facticidade das necessidades relativas a tais mercadorias a necessidade de uma tal organização da retaguarda do trabalho.

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O valor da troca não pode formar-se senão como agente do valor de uso, mas a sua vitória pelas suas próprias armas criou as condições da sua dominação autónoma. Mobilizando todo o uso humano e apoderando-se do monopólio da sua satisfação, ela acabou por dirigir o uso. O processo de troca identificou-se a todo o uso possível e reduziu-o à sua mercê. O valor de troca é o condottiere do valor de uso, que acaba por conduzir a guerra por sua própria conta.

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Esta constante da economia capitalista, que é a baixa tendencial do valor de uso, desenvolve uma nova forma de privação no interior da sobrevivência aumentada, a qual não está, por isso, mais liberta da antiga penúria, visto que exige a participação da grande maioria dos homens, como trabalhadores assalariados, no prosseguimento infinito do seu esforço; e que cada qual sabe que é necessário submeter-se-lhe ou morrer. É a realidade desta chantagem, o facto de o uso sob a sua forma mais pobre (comer, habitar) já não existir senão aprisionado na riqueza ilusória da sobrevivência aumentada, que é a base real da aceitação da ilusão em geral no consumo das mercadorias modernas. O consumidor real toma-se um consumidor de ilusões. A mercadoria é esta ilusão efectivamente real, e o espectáculo a sua manifestação geral.

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O valor de uso, que estava implicitamente compreendido no valor de troca, deve estar agora explicitamente proclamado na realidade invertida do espectáculo, justamente porque a sua realidade efectiva é corroída pela economia mercantil superdesenvolvida; e porque uma pseudojustificação se torna necessária à falsa vida.

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O espectáculo é a outra face do dinheiro: o equivalente geral abstracto de todas as mercadorias. Mas se o dinheiro dominou a sociedade enquanto representação da equivalência central, isto é, do carácter permutável dos bens múltiplos cujo uso permanecia incomparável, o espectáculo e o seu complemento moderno desenvolvido, onde a totalidade do mundo mercantil aparece em bloco como uma equivalência geral ao que o conjunto da sociedade pode ser e fazer. O espectáculo é o dinheiro que se olha somente, pois nele é já a totalidade do uso que se trocou com a totalidade da representação abstracta. O espectáculo não é somente o servidor do pseudo-uso. é já, em si próprio, o pseudo-uso da vida.

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O resultado concentrado do trabalho social, no momento da abundância económica, toma-se aparente e submete toda a realidade à aparência, que é agora seu produto. O capital não é já o centro invisível que dirige o modo de produção: a sua acumulação estende-o até à periferia, sob a forma de objectos sensíveis. Toda a vastidão da sociedade é o seu retracto.

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A vitória da economia autónoma deve ser, ao mesmo tempo, a sua perda. As forças que ela desencadeou suprimem a necessidade económica que foi a base imutável das sociedades antigas. Quando ela a substitui pela necessidade do desenvolvimento económico infinito, ela não pode senão substituir a satisfação das primeiras necessidades, sumariamente reconhecidas, por uma fabricação ininterrupta de pseudonecessidades que se reduzem à única pseudonecessidade da manutenção do seu reino. Mas a economia autónoma separa-se para sempre da necessidade profunda, na própria medida em que sai do inconsciente social que dela dependia sem o saber. «Tudo o que é consciente se usa. O que é inconsciente permanece inalterável. Mas uma vez liberto, não cai por sua vez em ruínas?» (Freud).

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No momento em que a sociedade descobre que ela depende da economia, a economia, de facto, depende dela. Esta potência subterrânea, que cresceu até aparecer soberanamente, também perdeu o seu poderio. Lá onde estava o ça (*) económico deve vir o je (*). O sujeito não pode emergir senão da sociedade, isto é, da luta que está nela própria. A sua existência possível está suspensa nos resultados da luta das classes, que se revela como o produto e o produtor da fundação económica da história.

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A consciência do desejo e o desejo da consciência são identicamente este projecto que, sob a sua forma negativa, quer a abolição das classes, isto é, a posse directa pelos trabalhadores de todos os momentos da sua actividade. O seu contrário é a sociedade do espectáculo onde a mercadoria se contempla a si mesma num mundo que ela criou .

(*) Mantêm-se o original para referenciar o conceito utilizado por Freud (N.T.)

Guy Debord (A Sociedade do Espectáculo Capitulo II)