O PROLETARIADO COMO SUJEITO E COMO REPRESENTAÇÃO

GUY DEBORD

A SOCIEDADE DO ESPECTÁCULO

CAPÍTULO IV

O PROLETARIADO COMO SUJEITO E COMO REPRESENTAÇÃO

O direito igual a todos os bens e aos gozos deste mundo, a destruição de toda a autoridade, a negação de todo o freio moral, eis, se descermos ao fundo das coisas, a razão de ser da insurreição de 18 de Março e a carta da temível associação que Ihe forneceu um exército.

Inquérito parlamentar sobre a insurreição de 18 de Março

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O movimento real, que suprime as condições existentes, governa a sociedade a partir da vitória da burguesia na economia, e de forma visível desde a tradução política dessa vitória. O desenvolvimento das forças produtivas rebentou com as antigas relações de produção e toda a ordem estática se desfaz em pó. Tudo o que era absoluto toma-se histórico.

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É sendo lançados na história, devendo participar no trabalho e nas lutas que a constituem, que os homens se vêem obrigados a encarar as suas relações de uma maneira desiludida. Esta história não tem um objecto distinto daquele que ela realiza sobre si própria, se bem que a última visão metafísica inconsciente da época histórica possa ver a progressão produtiva, através da qual a história se desenrolou, como o objecto mesmo da história. O sujeito da história não pode ser senão o vivo produzindo-se a si próprio, tomando-se senhor e possuidor do seu mundo que é a história, e existindo como consciência do seu jogo.

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Como uma mesma corrente, desenvolvem-se as lutas de classes da longa época revolucionária, inaugurada pela ascensão da burguesia, e o pensamento da história, a dialéctica, o pensamento que já não pára à procura do sentido do sendo, mas que se eleva ao conhecimento da dissolução de tudo o que é; e no movimento dissolve toda a separação.

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Hegel já não tinha que interpretar o mundo, mas a transformação do mundo. Interpretando somente a transformação, Hegel não é mais do que o acabamento filosófico da filosofia. Ele quer compreender um mundo que se faz a si próprio. Este pensamento histórico ainda não é senão a consciência que chega sempre tarde de mais, e que enuncia a justificação post festum. Assim, ela não ultrapassou a separação senão no pensamento. O paradoxo, que consiste em suspender o sentido de toda a realidade ao seu acabamento histórico, e em revelar ao mesmo tempo este sentido constituindo-se a si próprio em acabamento da história, resulta do simples facto de o pensador das revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII não ter procurado na sua filosofia senão a reconciliação com o seu resultado. «Mesmo como filosofia da revolução burguesa, ela não exprime todo o processo desta revolução, mas somente a sua última conclusão. Neste sentido, ela é uma filosofia não da revolução, mas da restauração» (Karl Korsch, Teses sobre Hegel e a revolução). Hegel fez, pela última vez, o trabalho do filósofo, «a glorificação do que existe», mas o que existia para ele já não podia ser senão a totalidade do movimento histórico. A posição exterior do pensamento, sendo de facto mantida, não podia ser encoberta senão pela sua identificação a um projecto prévio do Espírito, herói absoluto que fez o que quis e que quis o que fez, e cuja plena realização coincide com o presente. Assim, a filosofia que morre no pensamento da história já não pode glorificar o seu mundo senão renegando-o, porque para tomar a palavra é-lhe já necessário supor acabada esta história total, à qual ela tudo reduziu, e encerrada a sessão do único tribunal onde pode ser pronunciada a sentença da verdade.

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Quando o proletariado manifesta, pela sua própria existência em actos, que este pensamento da história não foi esquecido, o desmentido da conclusão é igualmente a confirmação do método.

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O pensamento da história não pode ser salvo senão tomando-se pensamento prático; e a prática do proletariado como classe revolucionária não pode ser menos que a consciência histórica operando sobre a totalidade do seu mundo. Todas as correntes teóricas do movimento operário revolucionário saíram de um afrontamento crítico com o pensamento hegeliano, em Marx como em Stirner e Bakunine.

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O carácter inseparável da teoria de Marx e do método hegeliano é ele próprio inseparável do carácter revolucionário desta teoria, isto é, da sua verdade. É nisto que esta primeira relação foi geralmente ignorada ou mal compreendida, ou ainda denunciada como o fraco daquilo que se tornava falaciosamente uma doutrina marxista. Bernstein, em Socialismo teórico e Social-democracia prática, revela perfeitamente esta ligação do método dialéctico e da tomada de partido histórico ao deplorar as previsões pouco científicas do Manifesto de 1847 sobre a iminência da revolução proletária na Alemanha: «Esta auto-sugestão histórica, tão errada que o primeiro visionário político aparecido nem sequer poderia encontrar melhor, seria incompreensível num Marx, que à época tinha já seriamente estudado a economia, se não se tivesse de ver nela o produto de um resto da dialéctica antitética hegeliana, de que Marx, não mais que Engels, nunca soube desfazer-se completamente. Nesses tempos de efervescência geral, isso foi-lhe tanto mais fatal».

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A reinversão que Marx efectua, através de um «salvamento por transferência» do pensamento das revoluções burguesas, não consiste em substituir trivialmente pelo desenvolvimento materialista das forças produtivas o percurso do Espírito hegeliano, indo ao seu próprio encontro no tempo, a sua objectivação sendo idêntica à sua alienação, e as suas feridas históricas não deixando cicatrizes. A história tomada real já não tem fim. Marx arruinou a posição separada de Hegel perante o que acontece, e a contemplação dum agente supremo exterior, qualquer que ele seja. A teoria já não tem a conhecer senão o que ela faz. É, pelo contrário, a contemplação do movimento da economia, no pensamento dominante da sociedade actual, que é a herança não-reivindicativa da parte não-dialéctica na tentativa hegeliana de um sistema circular: é uma aprovação que perdeu a dimensão do conceito, e que já não tem necessidade dum hegelianismo para se justificar, porque o movimento que se trata de louvar já não é senão um sector sem pensamento do mundo, cujo desenvolvimento mecânico domina efectivamente o todo. O projecto de Marx é o de uma história consciente. O quantitativo que sobrevêm ao desenvolvimento cego das forças produtivas simplesmente económicas deve transformar-se em apropriação histórica qualitativa. A crítica da economia política é o primeiro acto deste fim de pré-história: «De todos os instrumentos de produção, o maior poder produtivo é a própria classe revolucionária.»

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O que liga estreitamente a teoria de Marx ao pensamento científico é a compreensão racional das forças que se exercem realmente na sociedade. Mas ela é fundamentalmente um além do pensamento científico, onde este não é conservado senão sendo superado: trata-se de uma compreensão da luta ,e de nenhum modo da lei. «Nós só Conhecemos uma ciência: a ciência da história», diz A Ideologia Alemã.

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A época burguesa, que pretende fundar cientificamente a história, negligencia o facto de que esta ciência disponível teve, antes de mais, de ser ela própria fundada historicamente com a economia. Inversamente, a história não depende radicalmente deste conhecimento senão enquanto esta história permanece história económica. Quanto do papel da história na própria economia - o processo global que modifica os seus próprios dados científicos de base - pôde ser, aliás, neglicenciado pelo ponto de vista da observação científica, é o que mostra a vaidade dos cálculos socialistas que acreditavam ter estabelecido a periodicidade exacta das crises; e desde que a intervenção constante do Estado logrou compensar o efeito das tendências à crise, o mesmo género de raciocínio vê neste equilíbrio uma harmonia económica definitiva. O projecto de superar a economia, o projecto de tomar posse da história, se ele deve conhecer - e trazer a si - a ciência da sociedade, não pode, ele mesmo, ser científico. Nesse último movimento, que crê dominar a história presente através de um conhecimento científico, o ponto de vista revolucionário permaneceu burguês.

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As correntes utópicas do socialismo, embora elas própria fundadas historicamente na crítica da organização social existente, podem ser justamente qualificadas de utópicas na medida em que recusam a história - isto é, a luta real em curso, assim como o movimento do tempo para além da perfeição inalterável da sua imagem de sociedade feliz -, mas não porque eles recusassem a ciência. Os pensadores utopistas são, pelo contrário, inteiramente dominados pelo pensamento científico, tal como ele se tinha imposto nos séculos precedentes. Eles procuram o acabamento desse sistema racional geral: eles não se consideram de nenhum modo profetas desarmados, porque crêem no poder social da demonstrarão científica, e mesmo, no caso do saint-simonismo, na tomada do poder pela ciência. Como, diz Sombart, «quereriam eles arrancar pela luta, aquilo que deve ser provado,?» Contudo, a concepção científica dos utopistas não se alarga a este conhecimento de que os grupos sociais têm interesses numa situação existente, forças para a manter, e, igualmente, formas de falsa-consciência correspondentes a tais posições. Ela permanece, portanto, muito aquém da realidade histórica do desenvolvimento da própria ciência, que se encontrou em grande parte orientada pela procura social resultante de tais factores, que selecciona não só o que pode ser admitido, mas também o que pode ser procurado. Os socialistas utópicos, ao ficarem prisioneiros do modo de exposição da verdade científica, concebem esta verdade segundo a sua pura imagem abstracta, tal como a tinha visto impor-se um estádio muito anterior da sociedade. Como o notava Sorel, é segundo o modelo da astronomia que os utopistas pensam descobrir e demonstrar as leis da sociedade. A harmonia por eles visada, hostil à história, decorre duma tentativa de aplicação à sociedade da ciência menos dependente da história. Ela tenta fazer-se reconhecer com a mesma inocência experimental do newtonismo, e o destino feliz, constantemente postulado, «desempenha na sua ciência social um papel análogo ao que cabe à inércia na mecânica racional» (Materiais para uma teoria do proletariado).

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O lado determinista-científico no pensamento de Marx foi justamente a brecha pela qual penetrou o processo de «ideologização», enquanto vivo, e ainda mais na herança teórica deixada ao movimento operário. A chegada do sujeito da história é ainda adiada, e é a ciência histórica por excelência, a economia, que tende cada vez mais a garantir a necessidade da sua própria negação futura. Mas, deste modo, é repelida para fora do campo da visão teórica a prática revolucionária que é a única verdade desta negação. Assim, importa estudar pacientemente o desenvolvimento económico e nele admitir ainda, com uma tranquilidade hegeliana, a dor, o que no seu resultado permanece «cemitério das boas intenções». Descobre-se que agora, segundo a ciência das revoluções, a consciência chega sempre cedo de mais, e deverá ser ensinada. «A história não nos deu razão, a nós e a todos os que pensavam como nós. Ela mostrou claramente que o estado do desenvolvimento económico do continente estava, então, ainda bem longe de estar amadurecido...», dirá Engels em 1895. Durante toda a sua vida, Marx manteve o ponto de vista unitário da sua teoria, mas o enunciado da sua teoria colocou-se no terreno do pensamento dominante ao precisar-se, sob a forma de criticas de disciplinas particulares, principalmente a crítica da ciência fundamental da sociedade burguesa, a economia política. É esta mutilação, ulteriormente aceite como definitiva, que constitui o «marxismo».

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A carência na teoria de Marx é naturalmente a carência da luta revolucionária do proletariado da sua época. A classe operária não decretou a revolução em permanência, na Alemanha de 1848; a Comuna foi vencida no isolamento. A teoria revolucionária não pôde, pois, atingir ainda a sua própria existência total. Ficar reduzido a defendê-la e a precisá-la na separação do trabalho douto, no British Museum, implicava uma perda na própria teoria. São precisamente as justificações científicas tiradas do futuro do desenvolvimento da classe operária, e a prática organizacional combinada com estas justificações, que se tornarão obstáculos à consciência proletária num estádio mais avançado.

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Toda a insuficiência teórica na defesa cientifica da revolução proletária pode ser reduzida, quanto ao conteúdo assim como quanto à forma do enunciado, a uma identificação do proletariado com a burguesia, do ponto de vista da tomada revolucionária do poder.

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A tendência a fundar uma demonstração da legalidade científica do poder proletário, com o argumento de experimentações repetidas do passado, obscurece, desde o Manifesto, o pensamento histórico de Marx, ao fazê-lo sustentar uma imagem linear do desenvolvimento dos modos de produção, impulsionando lutas de classes que terminariam, de cada vez, «por uma transformação revolucionária da sociedade inteira ou pela destruição comum das classes em luta». Mas na realidade observável da história, do mesmo modo que «modo de produção asiático», como Marx algures o constatava, conservou a sua imobilidade apesar de todos os afrontamentos de classes, também as jacqueries de servos nunca venceram os barões, nem as revoltas de escravos da Antiguidade os homens livres. O esquema linear perde de vista, antes de tudo, o facto de que a burguesia é a única classe revolucionária que jamais venceu; ao mesmo tempo que ela é a única para a qual o desenvolvimento da economia foi causa e consequência do seu poder sobre a sociedade. A mesma simplificação conduziu Marx a negligenciar o papel económico do Estado na gestão de uma sociedade de classes. Se a burguesia ascendente pareceu franquear a economia do Estado, é somente na medida em que o Estado antigo se confundia com o instrumento de uma opressão de classe numa economia estática. A burguesia desenvolveu o seu poderio económico autónomo no período medieval de enfraquecimento do Estado, no momento de fragmentação feudal de poderes equilibrados. Mas o Estado moderno que, pelo mercantilismo, começou a apoiar o desenvolvimento da burguesia, e que finalmente se tornou o seu Estado na hora do «laisser faire, laisser passer», vai revelar-se ulteriormente dotado de um poder central na gestão calculada do processo económico. Marx pôde, no entanto, descrever no bonapartismo este esboço da burocracia estatal moderna, fusão do capital e do Estado, constituição de um «poder nacional do capital sobre o trabalho, de uma força pública organizada para a sujeição social», onde a burguesia renuncia a toda a vida histórica que não seja a sua redução à história económica das coisas, e se presta a «ser condenada ao mesmo nada político que as outras classes». Aqui, estão já colocadas as bases sociopolíticas do espectáculo moderno, que, negativamente, define o proletariado como único pretendente à vida histórica.

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As duas únicas classes que correspondem efectivamente à teoria de Marx, as duas classes puras às quais leva toda a análise no Capital, a burguesia e o proletariado, são igualmente as duas únicas classes revolucionárias da história, mas a títulos diferentes: a revolução burguesa está feita; a revolução proletária é um projecto, nascido na base da precedente revolução, mas dela diferindo qualitativamente. Ao negligenciar a originalidade do papel histórico da burguesia encobre-se a originalidade concreta deste projecto proletário, que nada pode atingir senão ostentando as suas próprias cores e conhecendo «a imensidade das suas tarefas». A burguesia veio ao poder porque é a classe da economia em desenvolvimento. O proletariado não pode ele próprio ser o poder, senão tornando-se a classe da consciência. O amadurecimento das forças produtivas não pode garantir um tal poder, mesmo pelo desvio da despossessão crescente que traz consigo. A tomada jacobina do Estado não pode ser um instrumento seu. Nenhuma ideologia Ihe pode servir para disfarçar fins parciais em fins gerais, porque ele não pode conservar nenhuma realidade parcial que seja efectivamente sua.

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Se Marx, num período determinado da sua participação na luta do proletariado, esperou demasiado da previsão científica, ao ponto de criar a base intelectual das ilusões do economismo, sabe-se que a tal não sucumbiu pessoalmente. Numa carta bem conhecida, de 7 de Dezembro de 1867, acompanhando um artigo onde ele próprio critica O Capital, artigo que Engels devia fazer passar na Imprensa como se emanasse de um adversário, Marx expôs claramente o limite da sua própria ciência: «... A tendência subjectiva do autor (que Ihe impunham talvez a sua posição política e o seu passado), isto é, a maneira como ele apresenta aos outros o resultado último do movimento actual, do processo social actual, não tem nenhuma relação com a sua análise real.» Assim Marx, ao denunciar ele próprio as «conclusões tendenciosas» da sua análise objectiva, e pela ironia do «talvez» relativo às escolhas extracientíficas que se Ihe teriam imposto, mostra ao mesmo tempo a chave metodológica da fusão dos dois aspectos.

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É na própria luta histórica que é preciso realizar a fusão do conhecimento e da acção, de tal modo que cada um destes termos coloque no outro a garantia da sua verdade. A constituição da classe proletária em sujeito é a organização das lutas revolucionárias e a organização da sociedade no momento revolucionário:: é aqui que devem existir as condições práticas da consciência, nas quais a teoria da práxis se confirma tomando-se teoria prática. Contudo, esta questão central da organização foi a menos considerada pela teoria revolucionária na época em que se fundava o movimento operário, isto é, quando esta teoria possuía ainda o carácter unitário vindo do pensamento da história (e que ela se tinha justamente dado por tarefa desenvolver até uma prática histórica unitária). É, pelo contrário, o lugar da inconsequência para esta teoria, ao admitir o retomar de métodos de aplicação estatais e hierárquicos copiados da revolução burguesa. As formas de organização do movimento operário desenvolvidas sobre esta renúncia da teoria tenderam por sua vez a interditar a manutenção de uma teoria unitária, dissolvendo-a em diversos conhecimentos especializados e parcelares. Esta alienação ideológica da teoria já não pode, então, reconhecer a verificação prática do pensamento histórico unitário que ela traiu, quando uma tal verificação surge na luta espontânea dos operários; ela pode somente concorrer para reprimir-lhe a manifestação e a memória. Todavia, estas formas históricas aparecidas na luta são justamente o meio prático que faltava à teoria para que ela fosse verdadeira. Elas são uma exigência da teoria, mas que não tinha sido formulada teoricamente. O soviete não era uma descoberta da teoria. E a mais alta verdade teórica da Associação Internacional dos Trabalhadores, era já a sua própria existência na prática.

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Os primeiros sucessos da luta da Internacional levavam-na a libertar-se das influências confusas da ideologia dominante que nela subsistiam. Mas a derrota e a repressão que ela cedo encontrará fizeram passar ao primeiro plano um conflito entre duas concepções da revolução proletária, ambas contendo uma dimensão autoritária, pela qual a auto-emancipação consciente da classe é abandonada. Com efeito, a querela tomada irreconciliável entre os marxistas e os bakuninistas era dupla, tendo ao mesmo tempo por objecto o poder na sociedade revolucionária e a organização presente do movimento, e ao passar dum ao outro destes aspectos, as posições dos adversários invertem-se. Bakunine combatia a ilusão de uma abolição das classes pelo uso autoritário do poder estatal, prevendo a reconstituição de uma classe dominante burocrática e a ditadura dos mais sábios, ou dos que serão reputados como tal. Marx, que acreditava que um amadurecimento inseparável das contradições económicas e da educação democrática dos operários reduziria o papel de um Estado proletário a uma simples fase de legalização de novas relações sociais, impondo-se objectivamente, denunciava em Bakunine e seus partidários o autoritarismo duma elite conspirativa que se tinha deliberadamente colocado acima da Internacional, e que formulava o extravagante desígnio de impor à sociedade a ditadura irresponsável dos mais revolucionários, ou dos que se teriam a si próprios designado como tal. Bakunine recrutava efectivamente os seus partidários sob uma tal perspectiva: «Pilotos invisíveis no meio da tempestade popular, nós devemos dirigi-la, não por um poder ostensivo mas pela ditadura colectiva de todos os aliados. Ditadura sem faixa, sem título, sem direito oficial, e tanto mais poderosa quanto ela não terá nenhuma das aparências do poder». Assim se opuseram duas ideologias da revolução operária, contendo cada uma delas uma critica parcialmente verdadeira, mas perdendo a unidade do pensamento da história e instituindo-se, a si próprias, em autoridades ideológicas. Organizações poderosas, como a social-democracia alemã e a Federação Anarquista Ibérica, serviram fielmente uma e outra destas ideologias; e em toda a parte o resultado foi grandemente diferente do que era desejado.

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O facto de olhar a finalidade da revolução proletária como imediatamente presente constitui, ao mesmo tempo, a grandeza e a fraqueza da luta anarquista real (porque nas suas variantes individualistas, as pretensões do anarquismo permanecem irrisórias). Do pensamento histórico das modernas lutas de classes, o anarquismo colectivista retém unicamente a conclusão, e a sua exigência absoluta desta conclusão traduz-se igualmente no seu desprezo deliberado do método. Assim, a sua crítica da luta política permaneceu abstracta, enquanto a sua escolha da luta económica não se afirmou, ela própria, senão em função da ilusão de uma solução definitiva arrancada de uma só vez nesse terreno, no dia da greve geral ou da insurreição. Os anarquistas têm um ideal a realizar. O anarquismo é a negação ainda ideológica do Estado e das classes, isto é, das próprias condições sociais da ideologia separada. É a ideologia da pura liberdade que iguala tudo e que afasta toda a ideia do mal histórico. Este ponto de vista da fusão de todas as exigências parciais deu ao anarquismo o mérito de representar a recusa das condições existentes no conjunto da vida, e não em tomo de uma especialização crítica privilegiada, mas esta fusão, ao ser considerada no absoluto, segundo o capricho individual, antes da sua realização efectiva condenou também o anarquismo a uma incoerência demasiado fácil de constatar. O anarquismo não tem senão a redizer e a repor em jogo, em cada luta, a sua simples conclusão total, porque esta primeira conclusão era desde a origem identificada com a concretização integral do movimento. Bakunine podia pois escrever em 1873, ao abandonar a Federação do Jura: «Nos últimos nove anos desenvolvemos no seio da Internacional mais ideias do que o necessário para salvar o mundo, se só por si as ideias pudessem salvá-lo, e desafio quem quer que seja a inventar uma nova. O tempo já não está para ideias, mas para factos e actos». Sem dúvida, esta concepção conserva do pensamento histórico do proletariado a certeza de que as ideias devem tornar-se práticas, mas ela abandona o terreno histórico ao supor que as formas adequadas a esta passagem à prática já estão encontradas e não variarão mais.

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Os anarquistas, que se distinguem explicitamente do conjunto do movimento operário pela sua convicção ideológica, vão reproduzir entre si esta separação das competências, ao fornecer um terreno favorável à dominação informal, sobre toda a organização anarquista, dos propagandistas e defensores da sua própria ideologia, especialistas, em regra geral, tanto mais medíocres quanto a sua actividade intelectual se reduz principalmente à repetição de algumas verdades definitivas. O respeito ideológico da unanimidade na decisão favoreceu antes a autoridade incontrolada, na própria organização, de especialistas da liberdade; e o anarquismo revolucionário espera do povo libertado o mesmo género de unanimidade, obtida pelos mesmos meios. De resto, a recusa de considerar a oposição das condições entre uma minoria agrupada na luta actual e a sociedade dos indivíduos livres alimentou uma permanente separarão dos anarquistas no momento da decisão comum, como o mostra o exemplo de uma infinidade de insurreições anarquistas em Espanha, limitadas e esmagadas num plano local.

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A ilusão, sustentada mais ou menos explicitamente no anarquismo autêntico, é a iminência permanente de uma revolução que deverá dar razão à ideologia, e ao modo de organização prático derivado da ideologia, ao realizar-se instantaneamente. O anarquismo conduziu realmente, em 1936, uma revolução social e o esboço, o mais avançado de sempre, de um poder proletário. Nesta circunstância, é preciso ainda notar, por um lado, que o sinal de uma insurreição geral tinha sido imposto pelo pronunciamento do exército. Por outro lado, na medida em que esta revolução não tinha sido concluída nos primeiros dias, pela existência de um poder franquista em metade do país, apoiado fortemente pelo estrangeiro no momento em que o resto do movimento proletário internacional já estava vencido, e pela sobrevivência das forças burguesas ou de outros partidos operários estatalistas no campo da República, o movimento anarquista organizado mostrou-se incapaz de alargar as meias-vitórias da revolução, e até mesmo de as defender. Os seus chefes reconhecidos tornaram-se ministros e reféns do Estado burguês que destruía a revolução para perder a guerra civil.

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O «marxismo ortodoxo» da II Internacional é a ideologia científica da revolução socialista, que identifica toda a sua verdade ao processo objectivo na economia e ao progresso dum reconhecimento desta necessidade na classe operária educada pela organização. Esta ideologia reencontra a confiança na demonstração pedagógica que tinha caracterizado o socialismo utópico, mas dotado de uma referência contemplativa ao curso da história: porém, uma tal atitude perdeu tanto a dimensão hegeliana de uma história total como perdeu a imagem imóvel da totalidade presente na crítica utopista (no mais alto grau, em Fourier).

É de uma tal atitude científica, que não podia fazer menos que relançar simetricamente escolhas éticas, que procedem as tolices de Hilferding quando este precisa que reconhecer a necessidade do socialismo não dá «indicação sobre a atitude prática a adoptar. Porque uma coisa é reconhecer uma necessidade, e uma outra é pôr-se ao serviço desta necessidade» (Capital financeiro). Aqueles que não reconheceram que o pensamento unitário da história, para Marx e para o proletariado revolucionário, não ara nada de distinto de uma atitude prática a adoptar, deviam normalmente ser vítimas da prática que tinham simultaneamente adoptado.

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A ideologia da organização social-democrata submetia-a ao poder dos professores que educavam a classe operária, e a forma de organização adoptada era a forma adequada a esta aprendizagem passiva. A participação dos socialistas da II Internacional nas lutas políticas e económicas era certamente concreta, mas profundamente não critica. Ela era conduzida, em nome da ilusão revolucionária, segundo uma prática manifestamente reformista. Assim, a ideologia revolucionária devia ser despedaçada pelo próprio sucesso daqueles que consigo a traziam. A separação dos deputados e dos jornalistas no movimento arrastava para o modo de vida burguês aqueles mesmos que eram recrutados entre os intelectuais burgueses. A burocracia sindical constituía em correctores da força de trabalho, a vender como mercadoria ao seu justo preço, aqueles mesmos que eram recrutados a partir das lutas dos operários industriais e deles extraídos. Para que a actividade de todos eles conservasse algo de revolucionário, teria sido necessário que o capitalismo se encontrasse oportunamente incapaz de suportar economicamente este reformismo que politicamente ele tolerava na sua agitação legalista. É uma tal incompatibilidade que a sua ciência garantia; e que a história desmentia a cada instante.

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Esta contradição, cuja realidade Bernstein, por ser o social-democrata mais afastado da ideologia política e o mais francamente ligado à metodologia da ciência burguesa, teve a honestidade de querer mostrar - e o movimento reformista dos operários ingleses, ao prescindir da ideologia revolucionária, tinha-o mostrado também - não devia, contudo, ser demonstrada sem réplica senão pelo próprio desenvolvimento histórico. Bernstein, embora cheio de ilusões quanto ao resto, tinha negado que uma crise da produção capitalista viesse miraculosamente obrigar os socialistas ao poder que não queriam herdar da revolução senão por esta legítima sagração. O momento de profunda perturbação social que surgiu com a primeira guerra mundial, embora tivesse sido fértil em tomada de consciência, demonstrou duplamente que a hierarquia social-democrata não tinha de modo algum tornado teóricos os operários alemães: de início, quando a grande maioria do partido aderiu à guerra imperialista, em seguida, quando na derrota ela esmagou os revolucionários spartakistas. O ex-operário Ebert acreditava ainda no pecado, porque confessava odiar a revolução «como o pecado». E o mesmo dirigente mostrou-se bom precursor da representação socialista que devia, pouco depois, opor-se como inimigo absoluto ao proletariado da Rússia e de algures, ao formular o programa exacto desta nova alienação: «O socialismo quer dizer trabalhar muito.»

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Lenine não foi, como pensador, marxista, senão Kautskista fiel e consequente, que aplicava a ideologia revolucionária deste «marxismo ortodoxo» nas condições russas, condições que não permitiam a prática reformista que a II Internacional seguia em contrapartida. A direcção exterior do proletariado, agindo por intermédio de um partido clandestino disciplinado, submetido aos intelectuais que se tornaram «revolucionários profissionais», constitui aqui uma profissão que não quer pactuar com nenhuma profissão dirigente da sociedade capitalista (o regime czarista sendo, de resto, incapaz de oferecer uma tal abertura, cuja base é um estádio avançado do poder da burguesia). Ela toma-se, pois, a profissão da direcção absoluta da sociedade.

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O radicalismo ideológico autoritário dos bolcheviques estendeu-se, à escala mundial, com a guerra e com o desmoronamento da social-democracia internacional perante a guerra. O fim sangrento das ilusões democráticas do movimento operário tinha feito do mundo inteiro uma Rússia, e o bolchevismo, reinando sobre a primeira ruptura revolucionária que esta época de crise tinha trazido, oferecia ao proletariado de todos os países o seu modelo hierárquico e ideológico, para «falar em russo» à classe dominante. Lenine não criticou ao marxismo da II Internacional o ser uma ideologia revolucionária, mas o ter deixado de o ser.

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O mesmo momento histórico, em que o bolchevismo triunfou para si mesmo na Rússia, e onde a social-democracia combateu vitoriosamente para o velho mundo, marca o nascimento acabado de uma ordem de coisas que está no coração da dominação do espectáculo moderno: a representação operária opôs-se radicalmente à classe.

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«Em todas as revoluções anteriores, escrevia Rosa Luxemburgo na Rote Fahne de 21 de Dezembro de 1918, os combatentes afrontavam-se de cara descoberta: classe contra classe, programa contra programa. Na presente revolução, as tropas de protecção da antiga ordem não intervêm sob a insígnia das classes dirigentes, mas sob a bandeira de um "partido social-democrata". Se a questão central da revolução estivesse posta aberta e honestamente, capitalismo ou socialismo, nenhuma dúvida, nenhuma hesitação seriam hoje possíveis na grande massa do proletariado.» Assim, alguns dias antes da sua destruição, a corrente radical do proletariado alemão descobria o segredo das novas condições que todo o processo anterior havia criado (para o qual a representação operária tinha grandemente contribuído): a organização espectacular da defesa da ordem existente, o reino central das aparências onde nenhuma «questão central» se pode já pôr «aberta e honestamente». A representação revolucionária do proletariado neste estádio tinha-se tornado, ao mesmo tempo, o factor principal e o resultado central da falsificação geral da sociedade.

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A organização do proletariado segundo o modelo bolchevique, que tinha nascido do atraso russo e da demissão do movimento operário dos países avançados quanto à luta revolucionária, encontrou, também no atraso russo, todas as condições que levavam esta forma de organização a uma reinversão contra-revolucionária que ela inconscientemente continha no seu germe original; a demissão reiterada da massa do movimento operário europeu perante o Hic Rhodus, hic salta do período de 1918-1920, demissão que incluía a destruição violenta da sua minoria radical, favoreceu o desenvolvimento completo do processo e dele deixou o resultado mentiroso, perante o mundo, como a única solução proletária. O apoderar-se do monopólio estatal da representação e da defesa do poder dos operários, que o partido bolchevique justificou, fê-lo tornar-se o que ele era: o partido dos proprietários do proletariado, eliminando no essencial as formas precedentes de propriedade.

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Todas as condições da liquidação do czarismo, encaradas no debate teórico sempre insatisfatório das diversas tendências da social-democracia russa, havia vinte anos - fraqueza da burguesia, peso da maioria camponesa, papel decisivo de um proletariado concentrado e combativo, mas extremamente minoritário no país - revelaram, afinal, na prática a sua solução, através de um dado que não estava presente nas hipóteses: a burocracia revolucionária que dirigia o proletariado, ao apoderar-se do Estado, deu à sociedade uma nova dominação de classe. A revolução estritamente burguesa era impossível; a «ditadura democrática dos operários e dos camponeses» era vazia de sentido; o poder proletário dos sovietes não podia manter-se, ao mesmo tempo, contra a classe dos camponeses proprietários, a reacção branca nacional e internacional, e a sua própria representação exteriorizada e alienada, em partido operário dos senhores absolutos do Estado, da economia, da expressão, e dentro em breve do pensamento. A teoria da revolução permanente de Trotsky e Parvus, à qual Lenine aderiu efectivamente em Abril de 1917, era a única a tomar-se verdadeira para os países atrasados em relação ao desenvolvimento social da burguesia, mas só depois da introdução deste factor desconhecido que era o poder de classe da burocracia. A concentração da ditadura nas mãos da representação suprema da ideologia foi defendida da maneira mais consequente por Lenine, nos numerosos afrontamentos da direcção bolchevique. Lenine tinha cada vez mais razão contra os seus adversários naquilo que ele sustentava ser a solução implicada pelas escolhas precedentes do poder absoluto minoritário: a democracia, recusada estatalmente aos camponeses, devia sê-lo aos operários, o que levava a recusá-la aos dirigentes comunistas dos sindicatos, em todo o partido, e finalmente até ao topo do partido hierárquico. No X Congresso, no momento em que o soviete de Kronstadt era abatido pelas armas e enterrado sob a calúnia, Lenine pronunciava contra os burocratas esquerdistas, organizados em «Oposição Operária», esta conclusão, de que Estaline iria alargar a lógica até uma perfeita divisão do mundo: «Aqui ou lá com uma espingarda, mas não com a oposição... Estamos fartos da oposição.»

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A burocracia, ficando única proprietária de um capitalismo de Estado, assegurou, antes do mais, o seu poder no interior através de uma aliança temporária com o campesinato, após Kronstadt, aquando da «nova política económica», tal como o defendeu no exterior, utilizando os operários arregimentados nos partidos burocráticos da III Internacional como força de apoio da diplomacia russa, para sabotar todo o movimento revolucionário e sustentar governos burgueses de que ela esperava um apoio em política internacional (O poder do Kuo-Ming-Tang na China de 1925--1927, a Frente Popular em Espanha e em Franca, etc.). Mas a sociedade burocrática devia prosseguir o seu próprio acabamento pelo terror exercido sobre o campesinato para realizar a acumulação capitalista primitiva mais brutal da história. Esta industrialização da época estalinista revela a realidade última da burocracia: ela é a continuação do poder da economia, a salvação do essencial da sociedade mercantil mantendo o trabalho-mercadoria. É prova da economia independente que domina a sociedade ao ponto de recriar para os seus próprios fins a dominação de classe que Ihe é necessária: o que se resume em dizer que a burguesia criou um poder autónomo que, enquanto subsistir esta autonomia, pode ir até ao prescindir de uma burguesia. A burocracia totalitária não é «a última classe proprietária da história» no sentido de Bruno Rizzi, mas somente uma classe dominante de substituição para a economia mercantil. A propriedade privada capitalista desfalecente é substituída por um subproduto simplificado, menos diversificado, concentrado em propriedade colectiva da classe burocrática. Esta forma subdesenvolvida de classe dominante é também a expressão do subdesenvolvimento económico; e não tem outra perspectiva senão a de recuperar o atraso deste desenvolvimento em certas regiões do mundo. É o partido operário, organizado segundo o modelo burguês da separação, que forneceu o quadro hierárquico-estatal a esta edição suplementar da classe dominante. Anton Ciliga notava, numa prisão de Estaline, que «as questões técnicas de organização revelavam-se ser questões sociais» (Lenine e n revolução.

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A ideologia revolucionária, a coerência do separado de que o leninismo constitui o mais alto esforço voluntarista, ao deter a gestão de uma realidade que a rejeita, com o estalinismo voltará à sua verdade na incoerência. Nesse momento, a ideologia já não é uma arma, mas um fim. A mentira que não é mais desmentida torna-se loucura. A realidade, assim como a finalidade, são dissolvidas na proclamação ideológica totalitária: tudo o que ela diz é tudo o que é. É um primitivismo local do espectáculo, cujo papel é, todavia, essencial no desenvolvimento do espectáculo mundial. A ideologia que se materializa aqui não transformou economicamente o mundo, como o capitalismo chegado ao estádio da abundância; ela só transformou policialmente a percepção.

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A classe ideológica totalitária no poder é o poder de um mundo reinvertido: quanto mais ela é forte, mais ela afirma que não existe, e a sua força serve-lhe antes do mais para afirmar a sua inexistência. Ela é modesta nesse único ponto, porque a sua inexistência oficial deve também coincidir com o nec plus ultra do desenvolvimento histórico, que simultaneamente se deveria ao seu infalível comando. Exposta por toda a parte a burocracia deve ser a classe invisível para a consciência, de forma que e toda a vida social que se torna demente. A organização social da mentira absoluta decorre desta contradição fundamental.

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O estalinismo foi o reino do terror na própria classe burocrática. O terrorismo que funda o poder desta classe deve também atingir esta classe, porque ela não possui nenhuma garantia jurídica, nenhuma existência reconhecida enquanto classe proprietária que ela poderia alargar a cada um dos seus membros. A sua propriedade real está dissimulada, e ela não se tomou proprietária senão pela via da falsa consciência. A falsa consciência não mantém o seu poder absoluto senão pelo terror absoluto, onde todo o verdadeiro motivo acaba por perder-se. Os membros da classe burocrática no poder não têm o direito de posse sobre a sociedade senão colectivamente, enquanto participantes numa mentira fundamental: é precise que eles desempenhem o papel do proletariado dirigindo uma sociedade socialista; que sejam os actores fiéis ao texto da infidelidade ideológica. Mas a participação efectiva neste ser mentiroso deve, ela própria, ver-se reconhecida como uma participação verídica. Nenhum burocrata pode sustentar individualmente o seu direito ao poder, pois provar que é um proletário socialista seria manifestar-se como o contrário de um burocrata; e provar que é um burocrata é impossível, uma vez que a verdade oficial da burocracia é a de não ser. Assim, cada burocrata está na dependência absoluta de uma garantia central da ideologia, que reconhece uma participação colectiva ao seu «poder socialista» de todos os burocratas que ela no aniquila. Se os burocratas, considerados no seu conjunto, decidem de tudo, a coesão da sua própria classe não pode ser assegurada senão pela concentração do seu poder terrorista numa só pessoa. Nesta pessoa reside a única verdade prática da mentira no poder: a fixação indiscutível da sua fronteira sempre rectificada. Estaline decide sem apelo quem é finalmente burocrata possuidor; isto é, quem deve ser chamado «proletário no poder» ou então «traidor a soldo do Mikado e de Wall Street». Os átomos burocráticos não encontram a essência comum do seu direito senão na pessoa de Estaline. Estaline é esse soberano do mundo que se sabe deste modo a pessoa absoluta, para a consciência da qual não existe espírito mais alto. «O soberano do mundo possui a consciência efectiva do que ele é - o poder universal da efectividade - na violência destrutiva que exerce contra o Soi (*) dos seus sujeitos fazendo-lhe contraste.» Ao mesmo tempo que é o poder que define o terreno da dominação, ele é «o poder devastando esse terreno».

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Quando a ideologia, tornada absoluta pela posse do poder absoluto, se transforma de um conhecimento parcelar numa mentira totalitária, o pensamento da história foi tão perfeitamente aniquilado que a própria história, ao nível do conhecimento mais empírico, já não pode existir. A sociedade burocrática totalitária vive num presente perpétuo, onde tudo o que sobreveio existe somente para ela como um espaço acessível à sua polícia. O projecto, já formulado por Napoleão, de «dirigir monarquicamente a energia das recordações» encontrou a sua concretização total numa manipulação permanente do passado, não só nos significados mas também nos factos. Mas o preço deste franqueamento de toda a realidade histórica é a perda de referência racional que é indispensável à sociedade histórica do capitalismo. Sabe-se o que a aplicação científica da ideologia esquecida pôde custar à economia russa, quanto mais não seja com a impostura de Lyssenko. Esta contradição da burocracia totalitária administrando uma sociedade industrializada, colhida entre a sua necessidade do racional e a sua recusa do racional, constitui também uma das deficiências principais face ao desenvolvimento capitalista normal. Do mesmo modo que a burocracia não pode resolver, como este, a questão da agricultura, ela é-lhe finalmente inferior na produção industrial, planificada autoritariamente na base do irrealismo e da mentira generalizada.

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O movimento operário revolucionário entre as duas guerras foi aniquilado pela acção conjugada da burocracia estalinista e do totalitarismo fascista que tinha copiado a sua forma de organização do partido totalitário experimentado na Rússia. O fascismo foi uma defesa extremista da economia burguesa, ameaçada pela crise e pela subversão proletária, o estado de sitio na sociedade capitalista, pelo qual esta sociedade se salva e se dota de uma primeira racionalização de urgência, fazendo intervir maciçamente o Estado na sua gestão. Mas uma tal racionalização é, ela própria, agravada pela imensa irracionalidade do seu meio. Se o fascismo se lança na defesa dos principais pontos da ideologia burguesa tornada conservadora (a família, a propriedade, a ordem moral, a nação), reunindo a pequena burguesia e os desempregados desnorteados pela crise ou desiludidos pela impotência da revolução socialista, ele próprio não é fundamentalmente ideológico. Ele apresenta-se como aquilo que é: uma ressurreição violenta do mito, que exige a participação numa comunidade definida por pseudovalores arcaicos: a raça, o sangue, o chefe. O fascismo é o arcaísmo tecnicamente equipado. O seu ersatz decomposto do mito é retomado no contexto espectacular moderno, do mesmo modo que a sua parte na destruição do antigo movimento operário faz dele uma das potências fundadoras da sociedade presente; mas como também acontece que o fascismo é a forma mais dispendiosa da manutenção da ordem capitalista, ele devia normalmente abandonar a boca da cena que ocupam os grandes papéis desempenhados pelos Estados capitalistas, eliminado por formas mais racionais e mais fortes desta ordem.

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Quando a burocracia russa consegue enfim desfazer-se dos traços da propriedade burguesa que entravam o seu reino sobre a economia, desenvolvê-la para o seu próprio uso, e ser reconhecida no exterior entre as grandes potências, ela quer desfrutar calmamente do seu próprio mundo, suprimindo esta porção de arbitrário que se exercia sobre si própria: ela denuncia o estalinismo da sua origem. Mas uma tal denúncia permanece estalinista, arbitrária, inexplicada e incessantemente corrigida, porque a mentira ideológica da sua origem nunca pode ser revelada. Assim, a burocracia não pode liberalizar-se nem culturalmente nem politicamente porque a sua existência como classe depende do seu monopólio ideológico que, com toda a sua grosseria, é o seu único título de propriedade. A ideologia perdeu certamente a paixão da sua afirmação positiva, mas o que dela subsiste de trivialidade indiferente tem ainda esta função repressiva de interditar a mínima concorrência, de manter cativa a totalidade do pensamento. A burocracia está, assim, ligada a uma ideologia em que já ninguém acredita. O que era terrorista tornou-se irrisório, mas esta mesma irrisão não pode manter-se senão conservando em segundo plano o terrorismo de que ela queria desfazer-se. Assim, no próprio momento em que a burocracia quer demonstrar a sua superioridade no terreno do capitalismo, ela confessa-se um parente pobre do capitalismo. Do mesmo modo que a sua história efectiva está em contradição com o seu direito, e a sua ignorância grosseiramente mantida em contradição com as suas pretensões cientificas, o seu projecto de rivalizar com a burguesia na produção duma abundância mercantil é entravado pelo facto de uma tal abundância trazer em si mesma a sua ideologia implícita, e reveste-se normalmente duma liberdade indefinidamente extensa de falsas escolhas espectaculares, pseudoliberdade que permanece inconciliável com a ideologia burocrática.

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Neste momento do desenvolvimento, o título de propriedade ideológica da burocracia já se desmorona à escala internacional. O poder, que se tinha estabelecido nacionalmente enquanto modelo fundamentalmente internacionalista, deve admitir que já não pode pretender manter a sua coesão mentirosa para além de cada fronteira nacional. O desigual desenvolvimento económico que conhecem as burocracias, de interesses concorrentes, que conseguiram possuir o seu «socialismo» fora dum só país, conduziu ao afrontamento público e completo da mentira russa e da mentira chinesa. A partir deste ponto, cada burocracia no poder, ou cada partido totalitário candidato ao poder deixado pelo período estalinista em algumas classes operárias nacionais, deve seguir a sua própria via. Juntando-se às manifestações de negação interior que começaram a afirmar-se perante o mundo com a revolta operária de Berlim-Leste, opondo aos burocratas a sua exigência de «um governo de metalúrgicos» e que já uma vez foram até ao poder dos conselhos operários da Hungria, a decomposição mundial da aliança da mistificação burocrática é, em última análise, o factor mais desfavorável para o desenvolvimento actual da sociedade capitalista. A burguesia está em vias de perder o adversário que a sustentava objectivamente ao unificar ilusoriamente toda a negação da ordem existente. Uma tal divisão do trabalho espectacular vê o seu fim quando o papel pseudo-revolucionário se divide por sua vez. O elemento espectacular da dissolução do movimento operário vai ser ele próprio dissolvido.

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A ilusão leninista já não tem outra base actual senão nas diversas tendências trotskistas, onde a identificação do projecto proletário a uma organização hierárquica da ideologia sobrevive inabalavelmente à experiência de todos os seus resultados. A distância que separa o trotskismo da crítica revolucionaria da sociedade presente, permite também a distância respeitosa que ele observa em relação a posições que eram já falsas quando foram usadas num combate real. Trotsky permaneceu até 1927 fundamentalmente solidário da alta burocracia, procurando mesmo apoderar-se dela para Ihe fazer retomar uma acção realmente bolchevique no exterior (sabe-se que, nesse momento, para ajudar a dissimular o famoso «testamento de Lenine», ele foi ao ponto de desmentir caluniosamente o seu partidário Max Eastman, que o tinha divulgado). Trotsky foi condenado pela sua perspectiva fundamental, porque no momento em que a burocracia se conhece a si própria no seu resultado como classe contra-revolucionária no interior, ela deve escolher também ser efectivamente contra-revolucionária no exterior, em nome da revolução, como em sua casa. A luta ulterior de Trotsky por uma IV internacional contém a mesma inconsequência. Ele recusou toda a sua vida reconhecer na burocracia o poder de uma classe separada, porque ele se tinha tornado durante a segunda revolução russa o partidário incondicional da forma bolchevique de organização. Quando Lukács, em 1923, mostrava nesta forma a mediação enfim encontrada entre a teoria e a prática, onde os proletários deixam de ser «espectadores» dos acontecimentos ocorridos na sua organização para conscientemente os escolherem e viverem, ele descrevia como méritos efectivos do partido bolchevique tudo o que o partido bolchevique não era. Lukács era ainda, a par do seu profundo trabalho teórico, um ideólogo, falando em nome do poder mais vulgarmente exterior ao movimento proletário, crendo e fazendo crer que ele próprio se reconhecia, com a sua personalidade total, nesse poder como no seu próprio. Porquanto o seguimento manifestasse de que maneira esse poder desmente e suprime os seus lacaios, Lukács, desmentindo-se a si mesmo sem fim, fez ver com uma nitidez caricatural aquilo a que se tinha exactamente identificado: ao contrário de si-mesmo, e do que ele tinha defendido na História e Consciência de Classe. Lukács verifica o melhor possível a regra fundamental que julga todos os intelectuais deste século: o que eles respeitam mede exactamente a sua própria realidade desprezível. Lenine não tinha, no entanto, lisonjeado muito este género de ilusões sobre a sua actividade, ele que convinha que «um partido político não pode examinar os seus membros para ver se há contradições entre a filosofia destes e o programa do partido». O partido real, de que Lukács tinha apresentado fora do tempo o retracto sonhado, não era coerente senão para uma tarefa precisa e parcial: apoderar-se do poder no Estado.

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A ilusão neoleninista do trotskismo actual, porque é a cada momento desmentida pela realidade da sociedade capitalista moderna, tanto burguesa como burocrática, encontra naturalmente um campo de aplicação privilegiado nos países «subdesenvolvidos» formalmente independentes, onde a ilusão de uma qualquer variante de socialismo estatal e burocrático é conscientemente manipulada como a simples ideologia do desenvolvimento económico, pelas classes dirigentes locais. A composição híbrida destas classes relaciona-se mais ou menos nitidamente com uma degradação sobre o espectro burguesia-burocracia. O seu jogo, à escala internacional entre estes dois pólos do poder capitalista existente, assim como os seus compromissos ideológicos - nomeadamente com o islamismo -, exprimindo a realidade híbrida da sua base social, acabam por retirar a este último subproduto do socialismo ideológico toda a seriedade, salvo a policial. Uma burocracia pôde formar-se enquadrando a luta nacional e a revolta agrária dos camponeses: ela tende então, como na China, a aplicar o modelo estalinista de industrialização numa sociedade menos desenvolvida que a Rússia de 1917. Uma burocracia capaz de industrializar a nação pode formar-se a partir da pequena burguesia, dos quadros do exército tomando o poder, como o mostra o exemplo do Egipto. Em certos pontos, como a Argélia no fim da sua guerra de independência, a burocracia, que se constituiu como direcção para-estatal durante a luta, procura um ponto de equilíbrio de um compromisso para se fundir com uma fraca burguesia nacional. Enfim, nas antigas colónias da África negra que continuam abertamente ligadas à burguesia ocidental, americana ou europeia, uma burguesia constitui-se - a maior parte das vezes a partir do poder dos chefes tradicionais do tribalismo - pela posse do Estado: nestes países onde o imperialismo estrangeiro permanece o verdadeiro senhor da economia, chega um estádio onde os compradores (**) receberam, em compensação da sua venda dos produtos indígenas, a propriedade de um Estado indígena, independente face às massas locais mas não face ao imperialismo. Neste caso, trata-se de uma burguesia artificial que não é capaz de acumular, mas que simplesmente delapida, tanto a parte de mais valia do trabalho local que Ihe cabe, como os subsídios estrangeiros dos Estados ou monopólios que são seus protectores. A evidência da incapacidade destas classes burguesas a desempenhar a função económica normal da burguesia ergue perante cada uma delas uma subversão segundo o modelo burocrático mais ou menos adaptado às particularidades locais que quer apoderar-se da sua herança. Mas o próprio êxito de uma burocracia no seu projecto fundamental de industrialização contém necessariamente a perspectiva do seu revés histórico: ao acumular o capital ela acumula o proletariado, e cria o seu próprio desmentido, num país onde ele ainda não existia.

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Neste desenvolvimento complexo e terrível, que arrastou a época das lutas de classes para novas condições, o proletariado dos países industrializados perdeu completamente a afirmação da sua perspectiva autónoma e, em última análise, as suas ilusões, mas não o seu ser. Ele não foi suprimido. Permanece irredutivelmente existente na alienação intensificada do capitalismo moderno: ele é a imensa maioria dos trabalhadores que perderam todo o poder sobre o emprego da sua vida, e que, desde que o sabem, se redefinem como o proletariado, o negativo em marcha nesta sociedade. Este proletariado é, objectivamente, reforçado pelo movimento do desaparecimento do campesinato, como pela extensão da lógica do trabalho na fábrica, que se aplica a uma grande parte dos «serviços» e das profissões intelectuais. É subjectivamente que este proletariado está ainda afastado da sua consciência prática de classe, não só nos empregados, mas também nos operários que ainda não descobriram senão a impotência e a mistificação da velha política. Porém, quando o proletariado descobre que a sua própria força exteriorizada concorre para o reforço permanente da sociedade capitalista, já não só sob a forma de trabalho seu, mas também sob a forma dos sindicatos, dos partidos ou do poder estatal que ele tinha constituído para se emancipar, descobre também pela experiência histórica concreta que ele é a classe totalmente inimiga de toda a exteriorização petrificada e de toda a especialização do poder. Ele traz a revolução que não pode deixar nada no exterior de si própria, a exigência da dominação permanente do presente sobre o passado, e a crítica total da separação; e é disto que ele deve encontrar a forma adequada na acção. Nenhuma melhoria quantitativa da sua miséria, nenhuma ilusão de integração hierárquica é um remédio durável para a sua insatisfação, porque o proletariado não pode reconhecer-se veridicamente num dano particular que teria sofrido, nem, portanto, na reparação de um dano particular, nem de um grande número desses danos, mas somente no dano absoluto de estar posto à margem da vida.

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Aos novos sinais de negação, incompreendidos e falsificados pela ordenação espectacular, que se multiplicam nos países mais avançados economicamente, pode-se já tirar a conclusão de que uma nova época está aberta: depois da primeira tentativa de subversão operária, é agora a abundância capitalista que falhou. Quando as lutas anti-sindicais dos operários ocidentais são reprimidas primeiro que tudo pelos sindicatos, e quando as correntes revoltadas da juventude lançam um primeiro protesto informe, no qual, porém a recusa da antiga política especializada, da arte e da vida quotidiana, está imediatamente implicada, estão aí as duas faces de uma nova luta espontânea que começa sob o aspecto criminal. São os signos precursores do segundo assalto proletário contra a sociedade de classe. Quando os enfants perdus (1) deste exército ainda imóvel reaparecem nesse terreno que se tornou outro e permaneceu o mesmo, eles seguem um novo «general Ludd», que desta vez os lança na destruição das máquinas do consumo permitido.

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«A forma política enfim descoberta, sob a qual a emancipação económica do trabalho podia ser realizada», tomou neste século uma nítida forma nos Conselhos operários revolucionários, concentrando neles todas as funções de decisão e de execução, e federando-se por intermédio de delegados responsáveis perante a base e revogáveis a todo o instante. A sua existência efectiva ainda não foi senão um breve esboço, imediatamente combatido e vencido por diferentes forças de defesa da sociedade de classe, entre as quais é necessário muitas vezes contar com a sua própria falsa consciência. Pannekoek insistia justamente no facto de que a escolha de um poder dos Conselhos operários «propõe problemas» mais do que traz uma solução. Mas este poder é precisamente o lugar onde os problemas da revolução do proletariado podem encontrar a sua verdadeira solução. É o lugar onde as condições objectivas da consciência histórica estão reunidas; a realização da comunicação directa activa, onde acabam a especialização, a hierarquia e a separação, onde as condições existentes foram transformadas «em condições de unidade». Aqui, o sujeito proletário pode emergir da sua luta contra a contemplação: a sua consciência é igual à organização prática de que ela se dotou, porque esta consciência é inseparável da intervenção coerente na história.

117

No poder dos Conselhos, que deve suplantar internacionalmente qualquer outro poder, o movimento proletário é o seu próprio produto, e este produto é o próprio produtor. Ele é para si mesmo a sua própria finalidade. Somente lá a negação espectacular da vida é por sua vez negada.

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A aparição dos Conselhos foi a mais alta realidade do movimento proletário no primeiro quarto do século, realidade que passou despercebida ou disfarçada porque ela desaparecia com o resto do movimento que o conjunto da experiência histórica de então desmentia e eliminava. No novo momento da crítica proletária, este resultado regressa como o único ponto invicto do movimento vencido. A consciência histórica, que sabe ter em si o seu único lugar de existência, pode agora reconhecê-lo, não já na periferia do que reflui, mas no centro do que sobe.

119

Uma organização revolucionária existente antes do poder dos Conselhos - deverá encontrar lutando a sua própria forma - sabe já, por todas essas razões históricas, que não representa a classe. Deve somente reconhecer-se a si própria como uma separação radical para com o mundo da separação.

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A organização revolucionária é a expressão coerente da teoria da práxis entrando em comunicação não-unilateral com as lutas práticas, em devir para a teoria prática. A sua própria prática é a generalização da comunicação e da coerência nestas lutas. No momento revolucionário da dissolução da separação social, esta organização deve reconhecer a sua própria dissolução enquanto organização separada.

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A organização revolucionária não pode ser senão a crítica unitária da sociedade. isto é, uma crítica que não pactua com nenhuma forma de poder separado, em nenhum ponto do mundo, e uma crítica pronunciada globalmente contra todos os aspectos da vida social alienada. Na luta da organização revolucionária contra a sociedade de classes as armas não são outra coisa senão a essência dos próprios combates: a organização revolucionária não pode reproduzir em si as condições de cisão e de hierarquia que são as da sociedade dominante. Ela deve lutar permanentemente contra a sua deformação no espectáculo reinante. O único limite da participação na democracia total da organização revolucionária é o reconhecimento e a auto-apropriacão efectiva, por todos os seus membros, da coerência da sua crítica, coerência que deve provar-se na teoria crítica propriamente dita, e na relação entre esta e a actividade prática.

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Quando a realização, cada vez mais poderosa da alienação capitalista a todos os níveis, tornando cada vez mais difícil aos trabalhadores reconhecer e nomear a sua própria miséria, os coloca na alternativa de recusar a totalidade da sua miséria ou nada, a organização revolucionária teve de aprender que ela já não pode combater a alienação sob formas alienadas.

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A revolução proletária está inteiramente suspensa desta necessidade que, pela primeira vez, é a teoria enquanto inteligência da prática humana que deve ser reconhecida e vivida pelas massas. Ela exige que os operários se tornem dialécticos e insiram o seu pensamento na prática; assim, ela pede aos homens sem qualidade bem mais do que a revolução burguesa pedia aos homens qualificados que ela delegava para os empreendimentos: porque a consciência ideológica parcial edificada por uma parte da classe burguesa tinha por base essa parte central da vida social, a economia, na qual esta classe estava já no poder. O próprio desenvolvimento da sociedade de classes até à organização espectacular da não-vida leva, pois, o projecto revolucionário a tornar-se visivelmente o que ele já era essencialmente.

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A teoria revolucionária é, agora, inimiga de toda a ideologia revolucionária e sabe que o é.

GUY DEBORD

(1) Gíria militar francesa designando extrema vanguarda (Guerra dos Trinta Anos). (N. T.)

(*) Mantém-se o original para não alterar a dimensão conferida por Hegel (N. T.)

(**) Em português, no original. (N. T.)