Karl Korsch, - A COMUNA REVOLUCIONÁRIA (II) - 1931

A COMUNA REVOLUCIONÁRIA (II) - 1931

Para compreender bem a atitude que Marx adoptou face à Comuna de Paris, é preciso partir da concepção por ele forjada, muito tempo antes, da relação existente entre as formas de organização próprias da luta de classe, primeiro da burguesia, depois do proletariado moderno. Quando, nesta Comuna saída da luta de classe dos produtores contra a classe dos exploradores e que fez em cacos a máquina do Estado burguês, Marx exaltava "a forma enfim encontrada da emancipação do trabalho", ele não pretendia de modo nenhum, como fizeram e continuam a fazer certos dos seus discípulos, consagrar assim uma forma determinada de organização política - a comuna revolucionária tal como o sistema revolucionário dos conselhos - como única e exclusiva forma concebível de ditadura do proletariado. Com efeito, ele acabava de apontar de forma expressa, na frase imediatamente anterior, para a "multiplicidade de interpretações a que a comuna tinha sido submetida" e para a "multiplicidade de interesses que se exprimiam nela", que mostravam que esta espécie de governo era uma "forma política efectivamente capaz de extensão". Era precisamente esta capacidade de extensão ilimitada do novo género de poder político, criado pelos comuneiros no fogo do combate, que distinguia a Comuna relativamente ao "desenvolvimento da forma burguesa de governo", o poder de estado centralizado da república parlamentar moderna. Era também ela que constituía aos olhos de Marx a condição primeira que permitiria mesmo, no fim de contas, havendo luta enérgica para fazer triunfar os interesses reais da classe operária, utilizar esse poder como uma alavanca para extirpar as bases económicas da existência das classes, da hegemonia de classe e do estado. Assim, em condições históricas determinadas, a constituição comunal transformar-se-ia na forma política assumida por um processo de desenvolvimento ou, ainda melhor dito, por uma acção revolucionária visando essencialmente não já manter uma qualquer espécie de dominação estatal, nem sequer instituir um "tipo de Estado superior", mas pelo contrário criar enfim as condições materiais básicas para a extinção do Estado em geral. "Sem esta última condição, a constituição comunal teria sido uma impossibilidade e uma ilusão", lê-se em Marx com toda a clareza desejável.

Não deixa de subsistir uma contradição insuperável , apesar de tudo, entre a maneira como Marx caracterizava a Comuna, "forma política enfim encontrada" que permitia realizar a emancipação económica e política da classe operária, e o modo como ao mesmo tempo sublinhava que, se a Comuna convinha para este fim, era antes de mais porque mantinha uma forma política vaga e ambígua, ou seja, em razão precisamente da sua amorfia. A posição adoptada por Marx nesse momento, sob influência de teorias às quais se tinha oposto antes de as anexar à sua concepção política originária e, mais ainda, sob o impacto dos prodigiosos acontecimentos de Paris, não parece clara num ponto. Enquanto que no Manifesto Comunista de 1847-1848, tal como na Mensagem Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores de 1864, não se punha ainda a questão da necessidade da "conquista do poder político pelo proletariado", a experiência da Comuna vinha agora mostrar a Marx que "a classe operária não pode contentar-se em tomar a máquina do Estado tal e qual e fazê-la funcionar por sua própria conta, mas que pelo contrário precisa de destruir a máquina actual do Estado burguês". Desde então e em particular desde que em 1917 Lenine se assumiu como restaurador da doutrina marxiana do Estado em toda a sua pureza, no plano teórico em O Estado e a Revolução e no plano prático levando a bom fim a revolução de Outubro, esta fórmula passou a ser considerada como um princípio essencial, o nó da teoria política do marxismo.

É óbvio contudo que esta definição puramente negativa do novo poder proletário, segundo a qual este último não deveria ser o estado actual, que o proletariado se contentaria em "tomar tal e qual e fazer funcionar por sua própria conta", não permite conceber de maneira positiva a forma do novo poder de Estado. Desde logo, é forçoso perguntarmo-nos por que razões a Comuna, sob a forma amplamente descrita e caracterizada por Marx na Mensagem de 1871 e depois, vinte anos mais tarde , por Engels no seu prefácio à terceira edição desta mesma Mensagem, constitui a "forma política" enfim encontrada do governo da classe operária? Como chegaram Marx e Engels, estes fervorosos admiradores do sistema centralizado da ditadura revolucionária burguesa instituída pela Convenção de 1792-1795, a fazer do sistema na aparência totalmente oposto a este, o sistema da "comuna", a "forma política" da ditadura revolucionária do proletariado?

De facto, basta analisar com algum rigor o programa e os objectivos políticos, que os dois fundadores do socialismo científico, Marx e Engels, tinham subscrito antes da insurreição da Comuna e que conservaram depois, para constatar que não apresentavam a mínima relação com a forma de ditadura proletária instaurada pela Comuna de 1871. Pelo contrário, Miguel Bakunine, o grande rival de Marx no seio da I Internacional, tinha incontestavelmente a verdade histórica do seu lado quando punha a ridículo a anexação tardia da Comuna de Paris pelo marxismo: "O seu efeito (da Comuna) foi tão formidável em toda a parte, que os próprios marxianos, cujas ideias tinham sido todas arrasadas por esta insurreição, se viram obrigados a tirar o chapéu perante ela. E fizeram mais: contrariando a mais simples lógica e os seus verdadeiros sentimentos, proclamaram que o programa e os objectivos dela eram também os deles. Foi um disfarce burlesco, mas forçado. Viram-se obrigados a fazê-lo, sob pena de se verem escorraçados e abandonados por todos, de tal modo era poderosa a paixão provocada por esta insurreição" (Citado por Brupbacher, Marx und Bakunine, 1922).

As ideias dos comuneiros procediam em parte do programa federalista de Proudhon e Bakunine, em parte do corpo de ideias jacobinas que sobrevivia no blanquismo, mas só em muito pequena medida do marxismo. Frederich Engels, falando vinte anos mais tarde dos blanquistas, ou seja da maioria dos comuneiros, podia dizer que em vez de aplicarem o seu programa da "mais estrita centralização de todo o poder nas mãos do novo governo revolucionário", tinham sido constrangidos pela força das coisas a proclamar a livre federação de todas as comunas da França com a comuna parisiense. Mas a mesma contradição se verificava em não menor grau entre a teoria política defendida até então por Marx e Engels e a aprovação incondicional que faziam agora da Comuna, como "forma política" enfim encontrada do governo da classe operária. É errado apresentar o desenvolvimento da teoria marxiana do Estado, à maneira de Lenine em O Estado e a Revolução, como se Marx tivesse concretizado desde 1952 as proposições abstractas do Manifesto Comunista de 1847-1848, relativas às tarefas políticas do proletariado no período de transição, dizendo que este devia destruir e estilhaçar o poder de Estado burguês actual. Esta tese leninista é infirmada pelas próprias afirmações de Marx e Engels, que sublinharam mais de uma vez que só a experiência da Comuna de 1871 tinha feito a demonstração convincente de que "a classe operária não pode contentar-se em tomar a máquina do estado tal e qual e fazê-la funcionar por sua própria conta". O próprio Lenine não deixava ele transparecer claramente a lacuna que comportava neste plano o seu quadro de desenvolvimento da teoria marxista revolucionária do Estado quando, neste ponto da citação, de resto tão minuciosa do ponto de vista histórico e tão exacta do ponto de vista filológico, de todas as declarações feitas sobre este assunto por Marx e Engels, saltava sem cerimónia um período de vinte anos? Passando directamente de O Dezoito do Brumário de Luís Bonaparte (1852) para A Guerra Civil em França (1871), omitia, entre outras coisas, o facto de, na Mensagem Inaugural da I Internacional (1864), Marx ter condensado todo o "programa político" do proletariado nesta fórmula lapidar: "A conquista do poder político tornou-se portanto a grande tarefa da classe operária".

De todo o modo, mesmo após 1871, data na qual Marx se pronunciou mais resoluta e distintamente do que nunca anteriormente pela destruição do estado burguês e pela instauração da ditadura do proletariado, ele evitou preconizar, como forma política desta ditadura, um governo de tipo comuneiro. Torna-se claro que ele não adoptaria esta maneira de ver senão no instante histórico em que escreveu inflamado a Mensagem ao Conselho Geral da A.I.T. sobre a Guerra Civil em França, para entrar em liça, em nome desta primeira organização do proletariado revolucionário, contra a reacção triunfante e a favor dos heróicos combatentes de 1871. Foi por consideração para com a natureza revolucionária da comuna que ele se absteve de fazer à forma particular por ela assumida a crítica que lhe deveria ter feito do seu ponto de vista próprio. Se deu mais um passo, exaltando sem ambiguidade, na forma política da constituição comunal, a "forma enfim encontrada" da ditadura proletária, isso explica-se em função não apenas de uma solidariedade natural com os trabalhadores revolucionários de Paris, mas também de um objectivo secundário bem determinado. Com efeito, Marx procurava, imediatamente após a luta e a derrota gloriosas dos comuneiros, não só anexar o marxismo à comuna, mas também anexar a comuna ao marxismo. Desde logo, para apanhar o sentido e o alcance deste texto notável, é preciso considerá-lo sem dúvida como um documento histórico clássico, uma epopeia e um hino fúnebre, mas além disso como um escrito polémico dirigido por Marx contra o adversário mais encarniçado que ele defrontava no decorrer das lutas fraccionárias que então dilaceravam a Internacional e não tardariam a precipitar o seu fim. Este objectivo fraccionário impediu o Marx da Mensagem de apreciar pelo seu justo valor o movimento revolucionário do conjunto do proletariado francês, movimento que surgiu em 1870, com as insurreições das comunas de Lyon e Marselha, para atingir o apogeu com a insurreição parisiense de 1871. Mais ainda, foi este objectivo que obrigou Marx a celebrar a constituição comunal revolucionária como a "forma política enfim encontrada" da ditadura de classe do proletariado, apresentando-a ao mesmo tempo, ao arrepio da sua natureza real, como um regime centralista.

Os próprios Karl Marx e Friedrich Engels, e mais ainda Lenine, já negavam que a Comuna de Paris tivesse tido alguma vez um carácter essencialmente federalista. Não podendo evitar falar dos traços evidentemente federalistas da constituição comunal, no breve esboço que dela traçava à escala de toda a França, Marx acentuava o facto (de modo nenhum contestado, bem entendido, por federalistas como Proudhon e Bakunine) de que "a unidade da nação não devia ser quebrada, mas pelo contrário organizada pela constituição comunal". Mais ainda, punha em destaque "as funções, pouco numerosas, mas importantes, que restavam a um governo central". E fazia notar que, segundo o plano da Comuna, estas funções "não deviam ser suprimidas, como foi dito falsamente e com objectivos determinados, mas deviam ser confiadas a funcionários comunais, u seja, rigorosamente responsáveis". Eis o que autorizava Lenine a declarar que, nas considerações de Marx sobre a tentativa dos comuneiros "não há traço de federalismo". "Marx é centralista. E, nas passagens dele citadas (em O Estado e a Revolução) não existe a menor derrogação do centralismo". É isso mesmo; só que, Lenine esquecia-se de dizer nesta passagem que o quadro que Marx traçava da Comuna de Paris não tinha nada a ver com uma caracterização historicamente conforme da constituição comunal, que os parisienses se tinham esforçado por criar e de que tinham colocado as fundações.

Como Lenine depois deles, Marx e Engels, desejosos de escamotear, tanto quanto possível, o carácter federativo e anti-centralista da Comuna de Paris, destacaram dela sobretudo o elemento negativo, dizendo que encarnava precisamente a destruição do estado burguês actual. Marx, Engels e Lenine sublinharam com razão que era preciso procurar a razão última do carácter revolucionário inerente à forma de poder instituída pela Comuna na sua natureza social, porquanto ela realizava a ditadura de classe do proletariado. A este propósito, eles lembravam vivamente aos seus adversários "federalistas" que a forma de Estado descentralizada, federativa, como tal, é tão burguesa como a forma de governo centralista própria do Estado burguês moderno. Porém, eis que acabavam por encorajar o mesmo erro que verberavam tão vivamente aos outros, na medida em que por seu lado davam uma importância desproporcionada, não certamente à natureza "federativa" da constituição comunal, mas a certos outros caracteres que distinguem do ponto de vista formal a Comuna de Paris da constituição do Estado parlamentar burguês e adquiridos por uma via diferente. É o caso da substituição do exército permanente pela milícia, da unificação do executivo e do legislativo, tal como da responsabilização e revogabilidade dos funcionários "comunais". Tal foi a origem de uma grave confusão de conceitos, que deveria ter efeitos desastrosos, não só quanto à atitude dos marxistas face à Comuna de Paris, mas também subsequentemente quanto à atitude da tendência marxista revolucionária face ao Estado dos conselhos.

Se é errado ver com Proudhon e Bakunine uma ultrapassagem do Estado burguês na forma "federativa", é igualmente errado crer, à maneira de tantos adeptos marxistas da Comuna revolucionária e, por tabela, do sistema revolucionário dos conselhos, que continuam hoje a apoiar-se em interpretações ambíguas de Marx, Engels e Lenine, que um deputado vinculado a um mandato imperativo, de curta duração e revogável a todo o momento, ou ainda um funcionário remunerado por um "salário operário", apresentariam por isso disposições menos burguesas do que um parlamentar eleito. É absolutamente errado pensar que uma constituição tipo "comuna" ou "Estado dos conselhos" instituída por um partido revolucionário proletário à frente do Estado, permitiria um dia despojar este último do carácter de instrumento de repressão de classe que lhe é inerente. Toda a teoria da "extinção definitiva do Estado na sociedade comunista", que Marx e Engels retomaram da tradição do socialismo utópico, na base das experiências práticas das lutas proletárias do seu tempo, perde o seu sentido revolucionário quando se defende com Lenine que pode existir um estado no seio do qual não é a minoria que reprime a maioria, mas pelo contrário "a maioria do povo que reprime os seus próprios opressores", sendo por outro lado tal aparelho ditatorial, pelo facto de instaurar a democracia verdadeira, proletária, um "Estado já em vias de instinção" (O Estado e a Revolução).

Vai sendo tempo de metermos claramente na cabeça os dois princípios fundamentais da teoria revolucionária proletária, princípios cuja adaptação provisória às necessidades práticas de fases determinadas da luta , como a insurreição da Comuna de 1871 ou a revolução russa de Outubro de 1917, colocou em sério risco de sucumbir às forças exteriores. O objectivo final propriamente dito da luta de classe proletária não é um estado de tipo "democrático", de tipo "comuna" ou dos "conselhos" ou de qualquer outro tipo, mas a sociedade comunista sem classes nem Estado, tendo por forma geral não já um poder político qualquer, mas apenas uma "associação onde o livre desenvolvimento de cada um é condição do livre desenvolvimento de todos" (Manifesto Comunista).

Até lá, pouco importa que a classe proletária "conquiste" o aparelho de Estado deixando-o subsistir mais ou menos intacto, como quer a ilusão dos reformistas marxistas, ou que ela chegue a apropriar-se dele verdadeiramente "quebrando" radicalmente a forma assim conquistada e substituindo-a por uma forma nova, como quer a teoria marxista revolucionária; este Estado, mesmo durante o período de transformação da sociedade capitalista em sociedade comunista, distinguir-se-á do Estado burguês unicamente pela sua natureza de classe e pela sua função social, não pela sua forma política. É no conteúdo social, não nas particularidades, imaginadas arbitrariamente ou realizadas outrora em circunstâncias específicas, de uma qualquer forma política, que reside o "verdadeiro segredo" da comuna revolucionária, do sistema revolucionário dos conselhos e de qualquer outra forma de manifestação histórica do governo da classe operária.

Karl Korsch,

"Revolutionäre Kommune", Die Action, Julho de 1931.