Karl Korsch - O FIM DA ORTODOXIA MARXISTA(*)

O FIM DA ORTODOXIA MARXISTA(*)

As conclusões do grande debate, cujas primeiras fases ficaram consignadas nos anais do Partido sob o nome "controvérsia Bernstein", revela claramente a enorme contradição entre o ser e a consciência, entre a ideologia e a realidade, que caracteriza o movimento proletário dos últimos trinta anos. Esta polémica, que respeita ao mesmo tempo a teoria e a prática do movimento socialista, explode, publicamente, pela primeira vez, no seio da social-democracia alemã e internacional da geração anterior pouco depois da morte de Friedrich Engels. Quando nessa data Eduard Bernstein, que tinha já dado sérias contribuições ao marxismo, exprimiu, pela primeira vez, no seu exílio londrino, as suas opiniões "heréticas" (inspiradas principalmente no estudo do movimento operário inglês) a propósito da relação entre a teoria e a prática no movimento socialista alemão e europeu da época, as suas concepções e pontos de vista foram, de momento e muito tempo após, unanimemente mal interpretadas e compreendidas, tanto por amigos como inimigos.

Em toda a imprensa burguesa e revistas especializadas, a sua obra Die Voraussetzungen des Sozialismus und die Aufgaben der Sozialdemokratie, foi acolhida com gritos de alegria e coberta de elogios. O dirigente do Partido Nacional-Socialista recentemente fundado - o ideólogo social imperialista Friedrich Naumann - declarava sem disfarces no seu jornal: "Bernstein é o nosso posto mais avançado no campo da social-democracia". e nos círculos da burguesia liberal reinava na época a esperança confiante que esse primeiro "revisionista" sério do marxismo romperia, também, oficialmente, com o movimento socialista para alinhar no campo do reformismo burguês.

Essas esperanças da burguesia encontravam a contra partida nas opiniões formuladas na época no seio do Partido Social-Democrata e de sindicalistas. Os chefes desse movimento admitiam, claramente, em privado, que "revendo" o programa marxista da social-democracia Bernstein apenas revelava oficialmente a evolução realizada desde há tempos na prática, e que tinha transformado o movimento social-democrata, de um movimento revolucionário de luta de classes num movimento de reforma político e social; mas esses mesmos chefes tinham grande cuidado em não divulgar publicamente essa opinião para uso doméstico. Bernstein, tendo terminado o seu livro convidando o Partido a "ousar parecer o que é: um partido de reforma política e social", foi discretamente chamado à ordem (numa carta privada, publicada posteriormente) por esse velho demagogo astucioso do comité executivo do Partido, Ignaz Auer, que o advertia amigavelmente: "Meu caro Eddy, isso são coisas que se fazem mas que não se dizem". Nos seus discursos públicos, todos os porta-vozes teóricos e activistas da social-democracia alemã e internacional, os Bebel, os Kautsky, os Victor Adler, os Plekhanov e todos os outros, tomaram posição contra esta divulgação imprudente do segredo tão cuidadosamente guardado. Quando o congresso do Partido, em Hanôver, em 1899, durante um debate de quatro dias aberto por Bebel com um relatório de seis horas, Bernstein foi submetido a um processo em regra. Escapou por pouco à expulsão. Mas, durante muito anos, ele continuou a ser alvo dos ataques da direcção nas reuniões de militantes e aderentes, na Imprensa, nas manifestações e nos congressos oficiais do Partido e dos sindicatos; e, a despeito do facto que o revisionismo de Bernstein tivesse já triunfado nos sindicatos e já não encontrasse resistência no seio do Partido, continuou-se a falar do "partido de luta de classes" revolucionário e anticapitalista até ao ultimo minuto, isto é, até à conclusão do pacto de paz social de 1914, seguido pelo pacto de associação do Capital e do Trabalho em 1918.

Os activistas e os teóricos da política conduzida pelo executivo do partido social-democrata e o aparelho sindical a ele ligado, tinham boas razões para adoptar esta atitude de jogo duplo face à primeira tentativa séria de formulação teórica dos fins e dos meios reais da política operária burguesa que eles na realidade praticavam. Hoje os representantes do aparelho do Partido Comunista Russo e de todas as secções nacionais da Internacional Comunista têm necessidade, para esconder o carácter real da sua política, de utilizar a piedosa lenda da progressão na "construção do socialismo na União Soviética" e da natureza intrinsecamente "revolucionária" da política e tácticas adoptadas em todas as circunstâncias por todas as direcções nacionais dos partidos comunistas. Semelhantemente, na época, os hábeis demagogos, que tinham assento no executivo do partido social-democrata e estavam à cabeça do aparelho sindical, tinham necessidade, para esconder as suas naturais tendências, em manter a piedosa lenda, segundo a qual o movimento que dirigiam se via por vezes constrangido, de momento, a desempenhar a função de retocador do Estado burguês e da ordem económica capitalista através de todo o género de reformas, mas "que no seu objectivo último", ele seguia em direcção à revolução social, ao derrube da burguesia e a abolição da ordem económica e social capitalista.

Mas, na pseudo-luta que na altura sustentavam contra o revisionismo de Bernstein, os demagogos do executivo do Partido Social-Democrata e os seus advogados "teóricos" não eram os únicos a reforçar a tendência para a degenerescência burguesa e reformista do movimento socialista. Nesse sentido, viu-se trabalhar durante muito tempo, inconscientemente e contra si próprios, teóricos revolucionários radicais tais como Rosa Luxemburgo, na Alemanha, e Lenine, na Rússia, os quais, subjectivamente, pensavam dirigir uma luta dura e sem compromissos contra a tendência representada por Bernstein. Quando hoje em dia e à luz das mais recentes experiências das últimas três décadas, nos debruçamos sobre esses primeiros conflitos direccionais no seio do movimento operário alemão e europeu, parece-nos um pouco trágico constatar quanto mesmo Luxemburgo e Lenine estavam profundamente enraizados na ilusão de que o "bernsteinismo" apenas representava um desvio em relação ao carácter fundamentalmente revolucionário do movimento social-democrata de então; trágico igualmente ver com que fórmulas objectivamente falsas eles entendiam dirigir a luta contra a degenerescência burguesa da política do partido socialista e dos sindicatos.

Rosa Luxemburgo terminava a sua polémica contra Bernstein, publicada em 1900 sob o título Sozialrefom oder Revolution (Reforma social ou revolução), com esta profecia catastroficamente falsa: "A teoria de Bernstein, foi a primeira e a ultima tentativa para dar ao oportunismo uma base teórica". Ela pensava que o oportunismo, ilustrado na teoria pelo livro de Bernstein e na prática pela tomada de posição de Schippel sobre o problema do militarismo(1), "foram tão longe que nada lhe restava acrescentar"(Rosa Luxemburgo). Com efeito, Bernstein tinha declarado, com insistência, "que aprovava a quase totalidade da prática actual da social-democracia" ao mesmo tempo que punha irremediavelmente a nu toda a insignificância prática da fraseologia revolucionária então em vigor sobre "o objectivo final". ao reconhecer abertamente: "O objectivo final, qualquer que seja, nada é para mim; o movimento é tudo". E contudo, Rosa Luxemburgo, vítima de uma notável alucinação ideológica, não dirigiu o seu contra-ataque crítico contra a prática da social-democracia, mas contra a teoria de Bernstein, que não passava da expressão autêntica da natureza real desta prática. Para ela, o traço característico que diferenciava o movimento social-democrata da política burguesa reformista não era a prática, mas expressamente o "objectivo final". o qual continuava, contudo, como a cobertura ideológica desta prática, ou mesmo uma simples fraseologia. Ela afirmava, com paixão, que "o objectivo final do socialismo é o único elemento decisivo que distingue o movimento social-democrata da democracia burguesa e do radicalismo burguês, o único elemento que, mais que dar ao movimento operário a vã tarefa de retocar o regime capitalista para o salvar, faz daquele uma luta de classe contra esse regime, para a abolição desse regime". Mas esse "objectivo final" de ordem geral que, segundo as palavras de Rosa Luxemburgo, devia ser tudo e distinguia o movimento social-democrata da política reformista burguesa, verificou-se assim como o provou a história posterior, não ser outra coisa senão o nada, anteriormente definido por Bernstein, esse sóbrio observador da realidade.

Todos aqueles que os acontecimentos dos últimos quinze anos não cegaram, encontrarão a confirmação decisiva desta evolução histórica nos discursos pronunciados, aquando dos diversos aniversários "marxianos" destes últimos tempos, pelos próprios principais participantes. É o caso, por exemplo, dos pronunciados nesse mesmo banquete, organizado em 1924 pelas grandes figuras do marxismo social-democrata, reunidas em Londres para celebrar o 60.º aniversário de Kautsky. Nessa ocasião, a "controvérsia" histórica entre o "marxismo ortodoxo" "revolucionário" de Kautsky e o reformismo "revisionista" de Bernstein terminou em harmonia com as "palavras de amizade" (recolhidas pelo "Vorwaerts") pronunciadas por Bernstein já com 75 anos, em honra dos 70 de Kautsky, e a simbólica cerimónia do abraço que se seguiu: "Quando Bernstein terminou e os dois velhos, cujos nomes são objecto de respeito há três gerações, se beijaram e abraçaram durante muitos segundos, quem poderia ter resistido à emoção, quem teria podido resistir a ela?".

E, em 1930, Kautsky, então com 75 anos, escreveu exactamente no mesmo sentido que no "Kampf" social-democrata de Viena, em honra do 80.º aniversário de Bernstein: "Desde 1880, fomos, nos negócios políticos do Partido, dois irmãos siameses; mesmo dois irmãos siameses podem discutir um pouco entre si. E por vezes fizemo-lo abundantemente. Mas mesmo nesses momentos, não teríamos podido falar de um sem falar do outro".

Outros testemunhos posteriores de Bernstein e de Kautsky fazem evidenciar o mais claramente possível o erro trágico desses dois radicais da esquerda alemã de antes da Guerra, os quais, com o slogan "objectivo revolucionário final contra a prática quotidiana reformista". entendiam conduzir a luta contra o aburguesamento prático, e logo também teórico, do movimento operário social-democrata, mas que, na realidade, apenas contribuíram para reforçar esta tendência histórica representada por Bernstein e Kautsky nos seus respectivos papéis.

Tendo em conta as devidas proporções, o mesmo acontece com um outro "slogan" empregue, na mesma época, pelo marxista russo Lenine, a fim de traçar, tanto no seu próprio país como a nível internacional, a linha de demarcação entre a política operária burguesa e a dos "revolucionários". Rosa Luxemburgo considerava-se a adversária mais radical do bernsteinismo, e na primeira edição de "Reforma ou revolução", de 1900, reclamava ainda expressamente a exclusão de Bernstein. Do mesmo modo, Lenine considerava-se como o inimigo mortal do "renegado" Bernstein, e de todos os desvios heréticos cometidos, no seu livro, em relação à doutrina pura e inalterada do programa marxista "revolucionário". Mas, exactamente como Luxemburgo e os sociais-democratas alemães de esquerda, o bolchevique social-democrata Lenine utilizou, na sua luta contra o revisionismo social-democrata uma plataforma totalmente ideológica. Com efeito, para ele, a garantia do carácter "revolucionário" do movimento operário não se encontrava no seu conteúdo de classe económica e social real, mas exclusivamente na tomada em mão da luta por uma direcção encarnada no Partido revolucionário que guia a teoria marxista correcta.

(*) KARL KORSCH (Dezembro de 1937)

In. I.C.C., Vol. 3, n.ºs 11 e 12 - Dezembro de 1937

(1) Schippel (1859-1928) pertence ao grupo revisionista da aprovação do orçamento militar, pensando que este permitiria alargar o mercado de trabalho.