De Abril a Março
Um dia ao sol de Abril alguns pavões
Se exibiram grasnando em altos brados
Que a pátria estava cheia de ladrões
E não dormiam com pena dos roubados
Com esta grasnada redentora
Abutres a fugir em debandada
Caíram os pavões na mesma hora
Em cima da carcaça abandonada
E abrindo a longa cauda e a plumagem
Enfunando com grande galhardia
Rufavam catadupas de coragem
E cada um por si mais prometia
Havia liberdade a tuta-e-meia
E direitos humanos a pataco
A democracia então era à macheia
E quem quisesse podia encher o saco
As coisas que eram caras sem razão
Passariam em seguida a ser baratas
E com o "direito sagrado" à habitação
Punham a casa ao preço das batatas
Mas depois, pouco tempo era passado
E quase sem ninguém se aperceber
O bico dos pavões ficou curvado
E as unhas começaram-lhe a crescer
Soube-se já no fim desta disputa
Que os ditos pavões não eram mais
Que outra espécie de abutres mais astuta
A disputar a presa aos seus iguais
Cresceu assim impante e agitado
O Portugal moderno e abrilento
Com brigas e barulho em todo o lado
Que todos queriam à uma ir lá para dentro
Ouvir falar de Abril era um encanto
Nunca ninguém ouvira assim falar
Que nenhum aldrabão aldrabou tanto
Antes dos abrilentos cá chegar
Até que de Paris chegou então
O maior abrilento lusitano
Espécie de D. Sebastião
Verbo guerreiro e alma de cigano
A língua afiada e nada presa
O discurso meloso, apadralhado
E muito não tardou que sua alteza
Fosse ocupar o trono abandonado
A partir desse dia o Zé Povinho
Não tinha Portugal amordaçado
Era livre como um passarinho
E o pão nunca mais foi aumentado
A fartura subiu a tal altura
Que quase não se queria acreditar
E a liberdade também, tudo à mistura
Como podemos hoje constatar
Foi assim que a vida em Portugal
Se tornou neste sonho encantador
Somos em corrupção o principal
E na droga não se pode estar pior
Na prostituição temos progresso
Com leis sabichonas e modernas
E não parou mais de haver sucesso
Para quem ganha a vida abrindo as pernas
Nas estradas, nos campos e nas matas
Nas ruas, nas esquinas da cidade
Vendem-se brancas, pretas e mulatas
Porque abril trouxe a liberdade
E depois deste progresso, sabiamente
Temos ainda em SIDA a primazia
Passamos a Europa toda à frente
Inclusive a Grécia e a Turquia
De Março a Março
Abril foi um sonho derradeiro
Sonho tardio, infantil e vão
Com que sonhara o mundo inteiro
Antes de acordar da sua hibernação
O sonho deixou hoje de fazer sentido
Quem sabe o porto onde vai parar
Quando pilota um barco de leme partido
Ouve rugir o vento e vê crescer o mar
Na surrealidade cega e soberana
Quem pode imaginar um futuro risonho
Quando no topo da ganância humana
O futuro é nada e o real é sonho
O Deus-Mercado, deus-globalizado
É agora o rei deste sistema vil
Rei do petróleo a bem do mercado
Rei do mercado a bem do barril
A carnificina cega da mercancia
Não perdoa mais nem se compadece
A guerra é lucro e nesta circunstância
Rebentando bombas o Mercado cresce
Todo o sonho antigo se evaporou
As manhãs que cantam, o ir mais além
Sonha hoje quem não acordou
Acordado não sonha agora ninguém
Chegamos ao fim duma longa estrada
O rei vai nu mas ninguém o diz
A demagogia, velha e desgraçada
Devora-se a si própria de tão infeliz
Morreu o progresso, esse galo canoro
Que há mil anos canta em cima da estrumeira
Há no ar um cheiro de muito mau agouro
A barbárie antiga que tão mal cheira
A obra-prima, a civilização
Dos grandes heróis e dos grandes santos
É esta gangrena de corrupção
Podridão e droga por todos os cantos
É a guerra, assaz, divinizada
Em nome da paz e da filantropia
É a humanidade aos milhões queimada
Ou morta à fome aos milhares por dia
No jargão cego e surdo do Mercado
O crime passou a feito de heroísmo
A morte e a vida tudo é contado
Na base dos lucros do Capitalismo
Do outro lado, mas qual lado?
Dizem os sábios ... mora o Terrorismo.
Leonel Santos, Fevereiro 2003