Leonel Santos - A COMÉDIA DA TRAGÉDIA



De Abril a Março


Um dia ao sol de Abril alguns pavões

Se exibiram grasnando em altos brados

Que a pátria estava cheia de ladrões

E não dormiam com pena dos roubados



Com esta grasnada redentora

Abutres a fugir em debandada

Caíram os pavões na mesma hora

Em cima da carcaça abandonada



E abrindo a longa cauda e a plumagem

Enfunando com grande galhardia

Rufavam catadupas de coragem

E cada um por si mais prometia



Havia liberdade a tuta-e-meia

E direitos humanos a pataco

A democracia então era à macheia

E quem quisesse podia encher o saco



As coisas que eram caras sem razão

Passariam em seguida a ser baratas

E com o "direito sagrado" à habitação

Punham a casa ao preço das batatas



Mas depois, pouco tempo era passado

E quase sem ninguém se aperceber

O bico dos pavões ficou curvado

E as unhas começaram-lhe a crescer



Soube-se já no fim desta disputa

Que os ditos pavões não eram mais

Que outra espécie de abutres mais astuta

A disputar a presa aos seus iguais



Cresceu assim impante e agitado

O Portugal moderno e abrilento

Com brigas e barulho em todo o lado

Que todos queriam à uma ir lá para dentro



Ouvir falar de Abril era um encanto

Nunca ninguém ouvira assim falar

Que nenhum aldrabão aldrabou tanto

Antes dos abrilentos cá chegar



Até que de Paris chegou então

O maior abrilento lusitano

Espécie de D. Sebastião

Verbo guerreiro e alma de cigano



A língua afiada e nada presa

O discurso meloso, apadralhado

E muito não tardou que sua alteza

Fosse ocupar o trono abandonado



A partir desse dia o Zé Povinho

Não tinha Portugal amordaçado

Era livre como um passarinho

E o pão nunca mais foi aumentado



A fartura subiu a tal altura

Que quase não se queria acreditar

E a liberdade também, tudo à mistura

Como podemos hoje constatar



Foi assim que a vida em Portugal

Se tornou neste sonho encantador

Somos em corrupção o principal

E na droga não se pode estar pior



Na prostituição temos progresso

Com leis sabichonas e modernas

E não parou mais de haver sucesso

Para quem ganha a vida abrindo as pernas



Nas estradas, nos campos e nas matas

Nas ruas, nas esquinas da cidade

Vendem-se brancas, pretas e mulatas

Porque abril trouxe a liberdade



E depois deste progresso, sabiamente

Temos ainda em SIDA a primazia

Passamos a Europa toda à frente

Inclusive a Grécia e a Turquia



De Março a Março

Abril foi um sonho derradeiro

Sonho tardio, infantil e vão

Com que sonhara o mundo inteiro

Antes de acordar da sua hibernação



O sonho deixou hoje de fazer sentido

Quem sabe o porto onde vai parar

Quando pilota um barco de leme partido

Ouve rugir o vento e vê crescer o mar



Na surrealidade cega e soberana

Quem pode imaginar um futuro risonho

Quando no topo da ganância humana

O futuro é nada e o real é sonho



O Deus-Mercado, deus-globalizado

É agora o rei deste sistema vil

Rei do petróleo a bem do mercado

Rei do mercado a bem do barril



A carnificina cega da mercancia

Não perdoa mais nem se compadece

A guerra é lucro e nesta circunstância

Rebentando bombas o Mercado cresce



Todo o sonho antigo se evaporou

As manhãs que cantam, o ir mais além

Sonha hoje quem não acordou

Acordado não sonha agora ninguém



Chegamos ao fim duma longa estrada

O rei vai nu mas ninguém o diz

A demagogia, velha e desgraçada

Devora-se a si própria de tão infeliz



Morreu o progresso, esse galo canoro

Que há mil anos canta em cima da estrumeira

Há no ar um cheiro de muito mau agouro

A barbárie antiga que tão mal cheira



A obra-prima, a civilização

Dos grandes heróis e dos grandes santos

É esta gangrena de corrupção

Podridão e droga por todos os cantos



É a guerra, assaz, divinizada

Em nome da paz e da filantropia

É a humanidade aos milhões queimada

Ou morta à fome aos milhares por dia



No jargão cego e surdo do Mercado

O crime passou a feito de heroísmo

A morte e a vida tudo é contado

Na base dos lucros do Capitalismo



Do outro lado, mas qual lado?

Dizem os sábios ... mora o Terrorismo.



Leonel Santos, Fevereiro 2003