O MEU ÚLTIMO ENCONTRO COM GUY DEBORD

O MEU ÚLTIMO ENCONTRO COM GUY DEBORD

Ricardo Paseyro (*)

Há dois meses, O Outono inundava com chuvas a Auvergne. Entre Bellevue-Ia-Montagne e Champot, a casa rústica por fim lá aparece: os muros altos que tem a rodeá-la estão orgulhosamente marcados pelos séculos. Talhado na pedra, um antigo escudo - maçónico sinal de reconhecimento. O telhado mal se enxerga, imagine-se o pátio, e por trás das construções vislumbra-se um pinhal. Calma, silêncio, solidão: os importunes não se aventuram até à morada onde Debord e Alice Becker-Ho a mulher, de braços abertos recebem os amigos.

Sem pressentir que serei o último a estanciar naquela casa, levo comigo Georges Monti, director das edições Le Temps qu`il fait; Debord queria confiar-lhe um curioso par de textos inéditos. Guy pousa o copo, mas não se levanta; e apesar disso a refinada cortesia que é a sua torna ainda mais visível a índole da relação muito afectuosa que nos liga. De camisola envergada, pouco se mexe. Folheamos alguns livros, falamos da recente e longa viagem que o levou a Veneza. E assim começam vários dias de ágapes, leituras, indagações, gargalhadas, corrosivas descrições dos títeres que a sociedade mediática engendra, idiotiza e devora.

A inteligência, o gosto e o espírito de Guy mantêm-se intactos. Demasiado lúcido para acreditar num futuro radioso, nenhuma amargura Ihe enreda as lembranças; de nada se censura, não dissocia a obra literária da acção que foi a sua. Admiramos juntos a manha das instituições actuais, que recuperam, sem os assimilar, os grandes artistas temíveis - os desprezados, marginais, franco-atiradores, precursores.

Debord antecipa: o seu próprio suicídio irá alimentar a máquina aplainadora. Os mesmos que todos os dias incensam os poetaços conformistas, os pinta-monos na moda, os «filósofos saca-migas» - todos eles bulímicos de televisão, jornais, prémios, medalhas, colóquios, louvores e cheques, glorificam-no agora em discursos mortuários.

Fá-lo-ão para o neutralizarem? Já Ihes tinha replicado, ao refutar certos juízos expensos a propósito dos seus filmes: «Disseram os especialistas do cinema que nisto residia uma funesta política revolucionária; e os políticos de todas as esquerdas ilusionistas que se tratava de um funesto cinema. Mas quando simultaneamente se é revolucionário e cineasta, facilmente se pode demonstrar que o genérico azedume dessas pessoas decorre duma evidência: que o filme em questão constitui a crítica exacta da sociedade que não sabem combater, e um primeiro exemplo de cinema que não sabem conceber.» (Oeuvres cinématographiques complètes, p. 185.)

Cuidadosamente preparado, o seu suicídio não encerra nenhum segredo: Debord recusou à doença o direito de Ihe arrebatar a independência. Não era um homem «misterioso»: era um ser raro, impossível de domar, coagir ou manipular. A ninguém alienava a sua liberdade - nem à vida, que amava, nem à morte, que dominou.

Com uma viva paixão pelos poetas verdadeiros, tradutor de Jorge Manrique, atraído pelos fora-da-lei, Debord endereçou-me em Novembro uma carta premonitória, que eu deveria ter compreendido: «Encontrei por fim a referência no honesto livro de Byron. Passo a citar-lhe a passagem: "Cervantes e Quevedo conheciam ambos Alonso Álvarez de Soria, o François Villon da hampa (mundo dos ladrões) de Sevilha.(...) O último poema de Álvarez foi escrito pouco antes da sua morte, provocada pela mesma doença da corda que levara Pedro Vásquez:

Três horas me dão de vida

Estes que à morte me escoltam

E visto ser longa a senda

Insistem no sair cedo...

Ah! quão curto soa este tempo que me resta:

Quem tanto deve, bem pouco pode pagar.»

Pergunta-me Debord: «Este glorioso Álvarez de Soria terá sido editado alguma vez?» Debruçado sobre o Sena - onde Alice Becker-Ho espalhou as cinzas de Guy Debord, lançando-as da orla do Vert-Galant, assim Ihe respondo: Não. Tal como nos nossos dias, também nesse tempo os editores destemidos eram poucos.

(*) Autor de Elogio do Analfabetismo,