A GESTÃO OPERÁRIA
(1969)
Paul Mattick
I
Com base nas relações capital trabalho, que caracterizam a ordem estabelecida, os produtores estão privados de toda a autoridade directa sobre a produção e sobre os produtos do seu trabalho. É evidente que as lutas a cabo com vista a uma melhoria da situação, ao modificarem a relação salário-lucro e por isso, o curso ou o ritmo da expansão do capital, podem permitir-lhes em determinados momentos o exercício de um poder indirecto. Mas, regra geral, é o capitalista que determina as condições de produção e os trabalhadores têm que se inclinar perante elas para assegurarem a sua subsistência, em virtude de apenas possuírem a venda da sua força de trabalho como meio de existência. É claro que o operário é "livre" de não consentir na sua própria exploração, mas isso só significa que é livre de morrer de fome, eis tudo. E isto já se sabia muito tempo antes do aparecimento do movimento socialista. Desde 1767 que Simon Linguet constatava ser o trabalho assalariado uma forma de escravatura ou pior ainda. "É a impossibilidade de poderem viver de outro modo - escrevia ele - que obriga os nossos trabalhadores a cavarem a terra da qual não comerão os frutos e os nossos pedreiros a erguerem edifícios onde jamais habitarão. É a miséria que os arrasta até aos mercados onde aguardam senhores dispostos à graça de os comprarem. É ela que os ajoelha junto dos ricos para obterem a permissão de os enriquecerem"(1). A propósito de "operário manual" Linguet exclamava: "Qual o ganho efectivo que a supressão da escravatura lhe trouxe? (...) É livre! - dizeis vós. Mas é essa a sua infelicidade! (...) O escravo era precioso ao seu senhor em razão do dinheiro que lhe custara. Mas o operário nada ao rico voluptuoso que o ocupa"(2). E conclui, ainda a propósito dos mesmos operários: "Estes, diz-se, não possuem dono. Ora isto é um simples abuso de palavras. O que quer isto dizer? Que têm um dono e o mais imperioso de todos: a necessidade. Esta obriga-os à mais cruel dependência"(3).
Dois séculos após estas linhas terem sido escritas nada do essencial mudou. Se os trabalhadores dos países avançados são obrigados a suportar as leis do capital e a obedecer aos capitalistas, não é de modo algum por devoção mas tão só por serem assalariados; não dispondo de meios de produção, continuam a formar uma classe dirigida, incapaz de forjar o seu próprio destino.
Desde sempre os socialistas perfilharam como objectivo a alcançar a abolição do salariato e portanto o fim do capitalismo. O movimento operário nascido no decurso da segunda metade do último século incumbiu-se de realizar esta transformação social por intermédio da socialização dos meios de produção. Tratava-se de substituir um modo de produção baseado na procura do lucro por um outro que tendesse a satisfazer as necessidades e aspirações dos produtores associados. À economia do mercado sucederia assim uma economia planificada. A partir de então a existência dos homens e o desenvolvimento da sociedade deixariam de ser regidos pela expansão e contracção do capital, elevado à categoria de fetiche, mas pelas decisões colectivas dos produtores, tomadas com conhecimento de causa, no quadro duma sociedade sem classes.
Produto da sociedade burguesa, o movimento operário encontrava-se fatalmente submetido às vicissitudes do desenvolvimento capitalista. Consequentemente, os seus traços distintivos variam em função da conjuntura e das suas flutuações. Quando numa determinada época, em certa região, esta conjuntura não é favorável à aparição de uma consciência de classe, o movimento ou não se desenvolve ou desaparece mesmo completamente. Em tempo de prosperidade tende a transformar-se e acaba por passar das posições revolucionárias ao reformismo. Em tempo de crise social corre o risco de ser aniquilado pela repressão que as classes dirigentes lançam contra ele.
As organizações operárias constituem parte integrantes da estrutura geral da sociedade. É-lhes portanto impossível ser anti-capitalista de um modo sistemático e intransigente, salvo no plano ideológico. Só mostrando-se oportunistas poderão vir a adquirir uma importância real no seio do sistema capitalista, quer dizer, aproveitando-se de certos processos sociais para realizarem os seus objectivos próprios mas até hoje limitados.
A formação, necessariamente lenta, de poderosas organizações, que reuniriam os elementos revolucionários, com vista a uma intervenção no momento propício, parece de excluir. Só as organizações que de modo algum procuram transformar as relações fundamentais têm a possibilidade de crescer e prosperar. Se alguma vez se apoiaram, no começo, numa ideologia revolucionária, o seu desenvolvimento provoca entre essa ideologia e a função que elas realmente desempenham um afastamento crescente.
Opostas ao statu quo mas organizadas no seio dele, estas formações estão, ao fim e ao cabo, condenadas a deixarem-se integrar no sistema capitalista na própria proporção do seu sucesso.
No fim do século, as organizações tradicionais - partidos e sindicatos operários - tinham abandonado a via revolucionária. Apenas uma pequena corrente de esquerda se mantinha no seu seio ligada às posições radicais. Lenine e Rosa Luxemburgo lançaram-se num combate doutrinal contra o evolucionismo reformista e oportunista, daí em diante característico das organizações existentes, e por um retorno à prática revolucionária. Enquanto o primeiro pretendia alcançar esse resultado por meio de um partido de tipo novo, estritamente submetido a um Comité Central, Rosa Luxemburgo punha a tónica na autodeterminação do proletariado, quer em geral quer no interior das organizações socialistas, e atribuía como condição primeira para esse retorno a eliminação da burocracia e a intervenção directa da base.
Como os partidos existentes haviam feito do marxismo a sua ideologia, algumas das tendências opostas à sua política tomaram igualmente posição contra as versões reformistas e revisionistas das teorias de Marx. Georges Sorel(4) e os seus sindicatos revolucionários, pelo seu lado, diziam-se convencidos não só da capacidade de emancipação do proletariado sem o auxilio da "intelligentsia", mas ainda preconizavam que aquele se devia desembaraçar dos elementos pequeno-burgueses que habitualmente dirigiam as organizações operárias. Os sindicalistas revolucionários opunham-se ao parlamentarismo e, segundo Georges Sorel, a entrada dos socialistas no governo em nada viria modificar a condição dos trabalhadores. Estes só conquistariam a liberdade agindo por e para si mesmos. A indústria capitalista, afirmava Sorel, organizara já o proletariado no seu conjunto, tudo quanto faltava era abolir o Estado e a propriedade privada. E para isso ser-lhe-ia necessário possuir a certeza, em todo o caso intuitiva, de que a revolução e o socialismo seriam o termo inevitável de todas as lutas, muito mais do que um conhecimento pretensamente científico das leis fatais do movimento social. Nesta perspectiva a greve aparecia como o grande meio de aprendizagem. E aumentando as greves em número, em amplitude e tempo, abrir-se-ia então a possibilidade de uma greve geral, isto é, de uma revolução social eminente.
Em muitos aspectos o sindicalismo revolucionário francês e as tendências a que deu origem, o socialismo de guilda em Inglaterra e os Industrial Workerers of the World nos Estados Unidos, constituíram reacções à burocratização cada vez maior do movimento socialista assim como à sua política de colaboração de classes. Igualmente os sindicatos se viam atacados devido à sua estrutura centralista e à propriedade atribuída às reivindicações corporativas em detrimento dos interesses de classe do proletariado. Mas todas as organizações - reformistas ou revolucionárias, centralistas ou federalistas - se inclinavam para considerarem o respectivo desenvolvimento e actividades do dia-a-dia como factores essenciais da transformação social. Quanto à social-democracia, via a progressiva realização do socialismo no crescimento dos efectivos e do aparelho do partido, nos progressos eleitorais e numa maior participação na vida pública. Por seu lado, os I.W.W. eram de opinião que o desenvolvimento da sua organização e a passagem ao estádio de "grande sindicato único"(One Big Union) significariam ipso facto "a formação da sociedade nova no seio da antiga"(5).
Todavia aquando da primeira revolução do séc. XX, foi a massa de trabalhadores não organizada que determinou o carácter do movimento e engendrou a sua própria forma de organização: os conselhos operários. Os conselhos russos, ou sovietes, da revolução de 1905 surgiram no contexto de uma vaga de greves espontâneas, quando a necessidade impôs a constituição de comités encarregados de coordenarem a acção e capazes de representarem os grevistas junto do patronato e autoridades czaristas. Tratava-se de greves espontâneas no sentido em que, longe de haverem rebentado sob a ordem de formações políticas ou sindicatos, foram desencadeadas por operários não organizados que apenas possuíam o local de trabalho como base de organização possível. Nesse tempo os partidos políticos não exerciam, na verdade, uma influência digna deste nome sobre a massa dos trabalhadores russos e os sindicatos apenas existiam em estado embrionário. Trotsky deixou-nos esta excelente definição do Soviete de 1905: "O Conselho dos Deputados Operários foi criado para responder a uma necessidade objectiva, suscitada pela conjuntura da época: faltava uma organização que usufruísse de uma autoridade indiscutível, livre de qualquer tradição, que agrupasse imediatamente as multidões disseminadas e desprovidas de qualquer ligação. Esta organização tinha que ser um complemento para todas as correntes revolucionárias no interior do proletariado; teria de ser capaz de iniciativa e vigilância eficazes. O essencial, enfim, era poder faze-la actuar em menos de vinte e quatro horas"(6). E Trotsky faria mais tarde esta distinção: enquanto os partidos revolucionários são "formações no interior do proletariado" o "Soviete torna-se imediatamente a própria organização do proletariado"(7).
É claro que a revolução de 1905 foi na sua essência uma revolução burguesa: usufruiu do apoio das classes médias liberais que procuravam a queda do absolutismo czarista e contavam com uma assembleia constituinte que fizesse evoluir a Rússia no sentido do ideal que perfilhavam: as condições predominantes nos países mais desenvolvidos. Na medida em que os operários em greve se preocupavam com política, adoptaram em grande parte o programa da burguesia liberal. Tal era igualmente o caso de todas as organizações socialistas que admitiam a necessidade de uma revolução burguesa como condição obrigatória para a formação de um movimento operário vigoroso e uma revolução proletária que se desenvolveria mais tarde, quando a situação estivesse suficientemente apta para isso.
O esmagamento da revolução russa provocou a liquidação do sistema dos sovietes, mas este viria a reaparecer, mais poderoso do que nunca, aquando da revolução de 1917. Organismos análogos aos sovietes russos e inesperados no seu exemplo surgiram "espontaneamente" no momento da revolução alemã em 1918 e igualmente - embora com menor amplitude - durante as graves convulsões sociais que então sacudiram a Inglaterra, a França, a Itália e a Hungria. Viu-se assim aparecer uma forma de organização capaz de dirigir e coordenar a acção autónoma das massas, quer com objectivos restritos quer com fins revolucionários. Consoante as suas opções, os novos organismos ora agiam de fora, ao lado, ou ainda contra as formações tradicionais. O que é importante acentuar é que o sistema de conselhos demonstrou que as actividades espontâneas das massas não estão fatalmente condenadas a soçobrar na incoerência mas podem, em caso de vitória, conduzir a um tipo de organização estruturada, mesmo que provisória.
A revolução russa de 1905 comunicou um novo vigor às oposições de esquerda que se manifestavam no seio dos partidos socialistas do Ocidente, que viriam no entanto a acentuar mais o caracter espontâneo das greves de massa do que a forma de organização escolhida. Aparecendo a revolução como uma possibilidade real, foi a atracção reformista que sofreu um primeiro golpe. No que diz respeito ao Ocidente, a Esquerda afirmava que daí em diante a revolução seria puramente proletária e nunca mais democrática burguesa. Contudo, mesmo segundo esta óptica, não se chegou ao ponto de concluir da experiência russa e dos seus ensinamentos positivos a necessidade de uma renúncia aos métodos parlamentares, tanto do agrado dos partidos reunidos na Segunda Internacional.
II
A perspectiva de um renascimento da prática revolucionária no Ocidente não deveria no entanto tardar a mostrar-se ilusória. Os "revisionistas" não eram os únicos a professar, segundo a fórmula do seu chefe de fila, Bernstein, que "o movimento é tudo, o objectivo nada". Igualmente os chamados marxistas ortodoxos julgavam que a revolução social não era desejável nem necessária. Embora se afirmassem fiéis ao velho ideal - a abolição do salariato - pretendiam porém realizá-lo pouco a pouco, fazendo uso dos meios legais que as instituições democráticas lhes ofereciam. No final de tudo, quando a massa dos eleitores se houvesse pronunciado a favor de um governo socialista, bastariam alguns decretos vindos de cima para instaurar a nova sociedade. Enquanto o aguardavam, a acção sindical e a legislação social permitiam também ao principio da concorrência generalizada que regia da parte que lhes cabia no progresso.
Os sofrimentos e as misérias inerentes ao capitalismo do "laissez-faire" não provocaram somente a criação de um movimento socialista, mas levaram também os trabalhadores a tentar uma melhoria de vida por meios não políticos. Entre estes últimos figuravam, além das diversas formações sindicais, as cooperativas operárias através das quais se esperava - mas em vão - escapar não só à condição assalariada como também ao princípio da concorrência generalizada que regia a sociedade burguesa. Este movimento originou-se a partir de pequenas colectividades comunistas surgidas em França, Inglaterra e América e que se inspiravam nas ideias dos socialistas utópicos, Owen e Fourier especialmente.
As cooperativas de produção eram associações fundadas sobre o principio da adesão voluntária e gestão autónoma. Algumas delas constituíram-se fora do movimento operário, outras em ligação com ele. Após a colocação em comum dos recursos, os seus membros estavam automaticamente - pensava-se - à altura de se regerem por si próprios e produzirem sem intervenção de capitalistas. O que simplesmente significava uma abstracção das condições gerais e das tendências evolutivas da sociedade capitalista, a quais logo de inicio viriam a conferir àquelas organizações um mero papel marginal. Na verdade, o desenvolvimento capitalista tem por base a concentração e a centralização do capital sob o estimulo da concorrência: os capitais mais importantes devoram os mais pequenos. Assim, as sociedades cooperativas apenas se poderiam constituir nas pequenas indústrias, que não necessitavam de grande capital. E acentuando-se o domínio do capitalismo sem cessar sobre todos os sectores da indústria, estas cooperativas em breve vieram a perder toda a capacidade de enfrentar a concorrência, e desapareceram do circuito de produção. As cooperativas de consumo tiveram mais êxito e algumas de entre elas absorveram mesmo cooperativas de produção com vista ao seu aprovisionamento. De qualquer modo não se podem considerar como ensaios de gestão operária, mesmo nos casos em que a sua criação correspondeu ao coroamento de aspirações da classe trabalhadora. Quando muito, vieram permitir alguma influencia sobre a maneira de dispor dos salários - visto que os trabalhadores correm o perigo de serem roubados duas vezes no local de produção e no local de consumo. Os custos de circulação das mercadorias representam falsos-custos Inevitáveis da produção e estão na origem da divisão dos capitalistas em comerciantes e empresários. Uns e outros procuram realizar um máximo de lucro na sua própria esfera de acção e existe confronto de interesses entre ambos os grupos. Os empresários não vêem portanto nenhum inconveniente na existência de cooperativas de consumo. Em geral esforçam-se mesmo por porem termo à separação entre capital produtivo e capital comercial, pela combinação das respectivas funções no seio de sociedades encarregadas de operações de produção e venda.
Finalmente absorvido pelo sistema, o movimento cooperativo constituiu em larga medida um elemento do desenvolvimento capitalista. Os próprios economistas burgueses viram nele um factor de conservação social, dado que encorajava a poupança junto das categorias mais pobres da população, estimulava a actividade pela criação de estabelecimentos de crédito mútuo, melhorava os rendimentos agrícolas graças à produção cooperativa e à organização das vendas e levava ainda a classe operária a interessar-se pela esfera do consumo, em detrimento da produção. Na sua qualidade de instituições funcionando segundo as normas capitalistas, as cooperativas operárias conheceram um verdadeiro desenvolvimento e acabaram por se tornar numa forma de empresa como as outras, baseadas na exploração da mão-de-obra e opondo-se aos trabalhadores quando estes se punham em greve a fim de obterem melhoria de salários e condições de trabalho. Contrariamente ao cepticismo, ou mesmo à oposição categórica, tomada primeiramente face às cooperativas de consumo o movimento operário reformista concedeu-lhe de seguida um decidido apoio que apenas era mais uma manifestação do seu carácter cada vez mais «capitalista». Na Rússia, no entanto, a rede muito espalhada destas cooperativas viria a fornecer aos bolcheviques um sistema de distribuição que não tardariam em converter em administração estatal.
De certo modo, a divisão do movimento «colectivista» em cooperativas de consumo e cooperativas de produção reflectia o antagonismo existente entre o sindicalismo revolucionário e os partidos socialistas. As primeiras reuniam todas as classes sociais e visavam todo o género de clientela. Tão pouco hesitavam em pronunciar-se por uma centralização à escala nacional ou mesmo internacional. Em contrapartida, as segundas possuíam um mercado tão restrito como a sua produção e não se podiam integrar, com vista à formação de unidades mais importantes, sem perderem as possibilidades de autogestão que constituíam afinal a sua razão de ser.
Sindicalistas revolucionários e socialistas diferiam antes de mais pela ideia que tinham respectivamente do controle exercido pelos operários sobre a produção e sobre o produto do seu trabalho. Na medida em que os socialistas ainda se preocupavam com este problema, resolviam-no a seu modo, dando prioridade ao conceito de nacionalização, segundo o qual o Estado, promovido a gerente dos recursos produtivos, ficaria encarregado da organização da vida económica no seu conjunto, quer no plano da produção quer no da distribuição. Seria somente num estado de desenvolvimento mais avançado que este sistema daria lugar ao desaparecimento do Estado e à livre associação dos produtores socializados.
Quanto aos sindicalistas revolucionários. temiam que o Estado, possuindo então o domínio sobre tudo, se viesse a perpetuar e a impedir a livre disposição dos trabalhadores. Essa a razão porque pretendiam uma sociedade em que cada sector da indústria fosse gerido por aqueles que nele trabalhassem. Todas estas associações de produção unir-se-iam para a formação de federações nacionais cujos organismos, longe de serem dotados de prerrogativas governamentais, só cumpririam funções estatísticas e administrativas. Nesta base, um sistema de produção e distribuição autenticamente colectivista poderia finalmente desenvolver-se. O sindicalismo revolucionário adquiriu importância em Espanha, na Itália e na França. Igualmente influiu em todos os países capitalistas por vezes assumiu uma forma modificada, como já o observamos a propósito dos I.W.W~ e do Guild Socialism. Por pôr a tónica na acção directa e numa actividade decididamente militante, o sindicalismo revolucionário separava-se do socialismo parlamentarista e do sindicalismo tradicional no que dizia respeito não só ao objectivo final mas também à luta de classe quotidiana.
Ainda que a questão do objectivo final não tivesse um interesse imediato, não deixava porém de influenciar o comportamento das partes em questão. A rápida burocratização dos partidos socialistas e dos sindicatos, ambos centralizados, viria a privar cada vez mais os operários da sua capacidade de iniciativa e a submete-los a dirigentes beneficiando da condições de vida e trabalho totalmente diferentes. Ao mesmo tempo que os sindicatos rompiam os seus laços de outrora com o movimento socialista, degeneravam em business unionism, em «sindicalismo de regateio», assumindo daí em diante as únicas funções de negociadores de convenções colectivas e, se possível, a de monopolizadores de contrato. Quanto ao sindicalismo revolucionário, se sofreu uma burocratização infinitamente menor, não foi só devido ao facto de ser o mais fraco numericamente entre as duas correntes que constituíam o movimento operário, mas porque o princípio da autogestão operária não deixou igualmente à influir nos seus métodos de luta quotidiana.
Dado que num sistema capitalista os trabalhadores estão; por definição, privados de todo o poder efectivo no seio da sociedade, falar de gestão operária num tal contexto apenas pode significar uma coisa: que as organizações operárias sejam dirigidas pelos próprios operários. Ora, depreende-se da integração destas organizações no sistema, tornadas «propriedade» de uma burocracia e grande meio da sua existência e reprodução, que a única forma concebível de gestão operária directa desaparece. É claro que isso não vem impedir os operários de se continuarem a bater pelo aumento de salários, pela redução do horário de trabalho e pela melhoria das condições em que este se realiza. Mas esta luta em nada altera a facto de os operários não possuírem a menor possibilidade de dirigirem as suas próprias organizações. É portanto abusivo pretender que estas lutas sejam uma forma de gestão operária, na medida em que não tendem para a autodeterminação da classe trabalhadora mas tão só procuram aligeirar a sua situação no contexto do capitalismo. E este desanuviamento tem como condição obrigatória uma elevação da produtividade do trabalho, a qual deve ser mais rápida do que o ritmo de aumento dos níveis de vida operários.
Os capitalistas continuam a exercer uma autoridade total quer sobre as condições de trabalho quer sobre a parte da produção geradora de mais-valia. Quando os operários alcançam uma diminuição do horário de trabalho, de modo algum estão a reduzir a quantidade de sobretrabalho açambarcado pelos capitalistas. Na verdade, o capitalistas dispõe de dois métodos para extrair sobretrabalho: ou alargando a duração do trabalho, ou encurtando, graças às inovações em matéria de técnica ou organização de trabalho, o tempo exigido para a produção do equivalente da massa salarial. Como é imprescindível que o capital ofereça uma determinada taxa de lucro, os capitalistas pararão a produção a partir do momento em que esta taxa ameace decrescer. Estreitamente submetidos à necessidade de acumular capital, vêem-se simultaneamente constrangidos a agir de um modo tal que permita aos operários produzirem a soma de sobretrabalho indispensável à alimentação do processo de acumulação. O capitalista tenta obter o máximo de lucro, mas, por diversas razões, entre as quais a resistência oferecida pelos trabalhadores à exploração suscitada pela procura de um lucro óptimo, corre o perigo de só extrair o mínimo. Porém, enquanto se situar no terreno do capitalismo, a resistência operaria não pode esperar resultados melhores do que estes. Se os operários acabaram por perder toda a autoridade no seio das suas organizações, a causa disso foi, é evidente, a sua complacência face ao sistema capitalista. Organizados ou não, os trabalhadores tomaram partido pela economia de mercado que se revelava capaz de Ihes melhorar a condição e ainda prometia à medida que progredisse. Numa situação não revolucionária deste género, os partidos socialistas reformistas e os sindicatos de estrutura centralizada Constituíam o tipo de organização eficaz. E, por outro lado, a burguesia lúcida via no businesse unionism o meio ideal de fazer reinar a paz social graças à conclusão de convenções colectivas. Deixando face directamente operários, os capitalistas tinham daí em diante pela frente os seus representantes, cuja existência estava ligada à das relações capital-trabalho, Ou seja, à perpetuação da ordem capitalista...