Posições situacionistas sobre a circulação
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O defeito de todos os urbanistas consiste em considerarem o automóvel individual (e os seus subprodutos, do tipo scooter) essencialmente como um meio de transporte. Nisto reside a principal materialização duma concepção da felicidade que o capitalismo desenvolvido tende a disseminar em toda a sociedade. O automóvel como bem soberano duma vida alienada, e inseparavelmente como produto essencial do mercado capitalista, está no centro da mesma propaganda global: diz-se este ano, correntemente, que a prosperidade económica norte-americana dependerá em breve do êxito do lema: «Dois carros por família».
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O tempo de transporte, como muito bem viu Le Corbusier, é um sobretrabalho que reduz na mesma proporção a jornada de vida pretensamente livre.
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Temos de passar da circulação como suplemento do trabalho à circulação como prazer.
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Querer refazer a arquitectura em função da existência actual, maciça e parasitária, dos carros individuais, é deslocar os problemas com um grave irrealismo. É preciso refazer a arquitectura em função de todo o movimento da sociedade, criticando todos os valores passageiros, ligados a formas de relações sociais condenadas (a família, em primeiro lugar).
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Mesmo que possa admitir-se provisoriamente, num período de transição a divisão absoluta entre zonas de trabalho e zonas de habitação, é pelo menos precise prever uma terceira esfera: a da própria vida (a esfera da liberdade, dos ócios - a verdade da vida). Sabemos que o urbanismo unitário não tem fronteiras; que pretende constituir uma unidade total do meio ambiente humano onde as separações, do tipo trabalho/ócios, colectivos/vida privada, serão finalmente dissolvidas. Mas antes disso, a acção mínima do urbanismo unitário há-de ser o terreno de jogos alargado a todas as construções desejáveis. Este terreno terá o grau de complexidade duma cidade antiga.
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Não se trata de combater o automóvel como um mal. É a sua extrema concentração nas cidades que acaba por negar o seu papel. O urbanismo não deverá certamente ignorar o automóvel, mas deverá ainda menos aceitá-lo como tema central, impondo-se-lhe que aposte no seu deperecimento. Seja como for, pode prever-se a sua proibição no interior de certos conjuntos novos, tal como em certas cidades antigas.
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Os que julgam que o automóvel é eterno, não pensam, nem sequer dum ponto de vista estritamente técnico, nas outras formas de transporte futuras. Por exemplo, certos modelos de helicópteros individuais, actualmente experimentados pelo exército dos Estados Unidos, estarão provavelmente difundidos entre o público daqui a menos de vinte anos.
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A ruptura da dialéctica do meio ambiente humano em favor dos automóveis (projecta-se a abertura de auto-estradas em Paris, levando isso à destruição de milhares de alojamentos, ao mesmo tempo que a crise da habitação se agrava sem cessar) esconde a sua irracionalidade por trás das explicações pseudopráticas. Mas a sua verdadeira necessidade prática corresponde a um estado social preciso. Os que julgam que os dados do problema são permanentes, na realidade querem acreditar na permanência da sociedade actual.
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Os urbanistas revolucionários não hão-de preocupar-se apenas com a circulação das coisas e dos homens coagulados num mundo de coisas. Tentarão desfazer estas cadeias topológicas, experimentando terrenos para a circulação dos homens com base na vida autêntica.
DEBORD
I. S. n." 3, Dezembro de 1959