Teses sobre a Internacional Situacionista e o seu tempo

Teses sobre a Internacional Situacionista e o seu tempo

EXCERTOS

11. A linguagem do poder tomou-se furiosamente reformista. Dantes, por todo o lado, nas suas montras, só expunha a felicidade, vendida pelo melhor preço em toda a parte; agora denuncia os omnipresentes defeitos do seu próprio sistema. Os possuidores da sociedade descobriram de súbito que se impõe mudar tudo sem tardança, tanto o ensino como o urbanismo, a maneira de encarar o trabalho ou as orientações da tecnologia. Em suma, esta gente perdeu a confiança em todos os seus governos; propõe-se portanto dissolvê-lo e constituir um outro. Sublinham apenas, estes reformadores, que são mais qualificados que os revolucionários para empreenderem tamanha transformação, que exige tanta experiência e tão avultados meios; os quais, justamente, eles possuem e bem conhecem. Cá temos portanto, de mão no coração, os computadores assumindo o compromisso de programarem o qualitativo, e os gestores da poluição destinando a si mesmos a prioritária tarefa de dirigirem a luta contra a sua própria poluição. O capitalismo moderno, porém, já anteriormente se apresentava, perante os antigos malogros da revolução, como um reformismo que vencera na vida. Gabava-se de ter transformado a mercadoria nesta liberdade e nesta ventura. Um dia acabaria até por libertar os seus escravos, senão do salariato, pelo menos dos abundantes resíduos de privações e excessivas desigualdades herdadas do seu período de formação - ou, mais exactamente, das privações que ele próprio achava por bem reconhecer como tais. Hoje promete liberta-los, alem disso, de todos os nos novos perigos e dissabores que precisamente agora está produzindo maciçamente, como característica essencial da mercadoria mais moderna globalmente encarada; e é a mesma produção em expansão, tão celebrada até agora como o último correctivo de tudo quanto há, que vai ter ela própria de se corrigir, ainda e sempre sob o controlo exclusivo dos mesmíssimos patrões. A insolvência do velho mundo exibe-se por completo na ridícula linguagem da dominação decomposta.

15. A sociedade que possui todos os meios técnicos para altear as bases biológicas da existência na Terra inteira, é igualmente uma sociedade, através do mesmo desenvolvimento técnico-científico separado, que dispõe de todos os meios de controle e previsão matematicamente indubitável para avaliar de modo exacto e por antecipação a que grau de decomposição do meio ambiente humano pode chegar - e em que datas, segundo um prolongamento mais ou menos favorável - o crescimento das forças produtivas alienadas da sociedade de classes. Quer se trate da poluição química do ar respirável da falsificação dos alimentos, da acumulação irreversível da radiactividade devido à utilização industrial da energia nuclear ou da deterioração do ciclo da água desde os lençóis freáticos até aos oceanos, da lepra urbanística exposta cada vez mais onde antes havia cidade campos; quer se trate, ainda, da «explosão demográfica», da progressão do suicídio e das doenças mentais ou do limiar atingido pela nocividade do ruído - em toda a parte os conhecimentos parciais sobre a impossibilidade, mais ou menos urgente ou mortal conforme os casos, de ir mais longe, constituem, como conclusões cientificas especializadas apenas mantidas em justaposição, um quadro da degradação geral e da impotência geral. Este deplorável resumo do mapa em que se estende o território da alienação, pouco antes de ser submerso, é efectuado, naturalmente, tal como foi construído o próprio território: por sectores separados. Doravante, tais conhecimentos do parcelar são sem dúvida obrigados a saber, pela desgraçada concordância de todas as suas observações, que cada modificação eficaz rendível a curto prazo num determinado ponto, se repercute na totalidade das forças em jogo, podendo ulteriormente levar a uma perda mais decisiva. Uma tal ciência, todavia, serva do modo de produção e das aporias do pensamento que ele produziu, não pode conceber uma verdadeira inversão do andamento das coisas. Esta ciência não sabe pensar estrategicamente, coisa, aliás, que ninguém lhe pede; e também não detém os meios práticos de nisso intervir. Pode portanto discutir sobre o prazo e os melhores paliativos que, sendo aplicados com firmeza, recuariam esse prazo. Esta ciência mostra assim, no grau mais caricatural, a inutilidade do conhecimento sem emprego e o zero absoluto do pensamento não dialéctico numa época arrastada pelo movimento do tempo histórico. Deste modo, o velho lema «a revolução ou a morte» já não é a expressão lírica da consciência revoltada, é a última palavra do pensamento científico do nosso século. Mas este lema só por outros pode ser pronunciado, não pelo velho pensamento científico da mercadoria, que revela as bases insuficientemente racionais do seu desenvolvimento na altura em que todas as suas aplicações se alastram, segundo o vigor da prática social plenamente irracional. E este o pensamento da separação, que só através dos meios metodológicos da separação pôde incrementar o domínio material que exercemos, voltando no fim a deparar com esta separação, plenamente realizada na sociedade do espectáculo e na sua autodestruição.

17. A poluição e o proletariado são hoje as duas faces concretas da crítica da economia política. O desenvolvimento universal da mercadoria verificou-se inteiramente como realização plena da economia política, ou seja, como «renúncia à vida». No momento em que tudo entrou na esfera dos bens económicos, tudo, incluindo a água das fontes e o ar das cidades, se tomou o mal económico. A simples Sensação imediata das «nocividades» e dos perigos, mais sufocantes em cada novo trimestre, que antes de mais e principalmente agridem a grande maioria, ou seja, os pobres, constitui já um imenso factor de revolta, uma exigência vital dos explorados, tão materialista como o foi a luta dos operários do século XIX para poderem comer. 0s remédios para todas as doenças criadas pela produção, neste estádio da sua riqueza mercantil, já são caros demais para ela. As relações de produção e as forças produtivas atingiram por fim um ponto de incompatibilidade radical, porque o sistema social existente ligou o seu destino ao prosseguimento duma deterioração literalmente insuportável de todas as condições de vida.

18. Com a nova época surge esta coincidência admirável: revolução é desejada numa forma total no próprio momento em que só pode ser plenamente realizada numa forma total, e em que todo o funcionamento da sociedade se toma absurdo e impossível fora desta realização completa. O facto fundamental já não é propriamente que todos os meios materiais existem para a construção da vida livre duma sociedade sem classes; é antes que a cega subutilização destes meios pela sociedade de classes não pode interromper-se nem ir mais longe. Nunca uma tal conjunção existiu na história do mundo.

19. A maior força produtiva é a própria classe revolucionária.

O maior desenvolvimento das forças produtivas hoje possível consiste muito simplesmente na utilização que disso possa fazer a classe da consciência histórica, na produção da história como campo do desenvolvimento humano, a si mesma destinando os meios práticos desta consciência: os futuros conselhos revolucionários em que a totalidade dos proletários terá de decidir sobre tudo. A definição necessária e suficiente do Conselho moderno - para o distinguir das suas débeis tentativas primitivas, sempre esmagadas antes de poder seguir a lógica do seu próprio poder e conhecê-lo - é a plena realização das suas tarefas mínimas; mínimas tarefas essas que consistem na definitiva regularização prática de todos os problemas que a sociedade de classes é agora incapaz de resolver. A queda brutal da produção pré-histórica, como só pode consegui-la a revolução social de que falamos, constitui a condição necessária e suficiente para o começo duma era da grande produção histórica; o novo prosseguimento indispensável e urgente da produção do homem por si mesmo. A amplitude das presentes tarefas da revolução proletária exprime-se justamente na dificuldade que esta tem para conquistar os primeiros elementos práticos da formulação e comunicação do seu projecto: para se organizar de maneira autónoma e, graças a esta destemida organização, compreender e formular explicitamente a totalidade do seu projecto nas lutas que já leva a cabo. É que neste ponto central, que há-de soçobrar em último lugar, do monopólio espectacular do diálogo social e da explicação social, o mundo inteiro assemelha-se a Polónia: quando os trabalhadores podem associar-se livremente e sem intermediários, para discutirem os seus problemas reais, o Estado começa a dissolver-se.(1) Podemos também decifrar a força da subversão proletária, que cresce por todo o lado desde há quatro anos, no seguinte facto negativo: ela mantém-se muito abaixo das reivindicações explícitas que outrora puderam afirmar movimentos proletários que iam menos longe; e que julgavam conhecer os seus programas, conhecendo-os todavia como programas menores. O proletariado de modo nenhum é levado a ser «a classe da consciência» por um qualquer talento intelectualista ou uma qualquer vocação ética, nem sequer pelo prazer de realizar a filosofia; isso acontece, mais simplesmente, porque ele, no fim de contas, não tem outro remédio senão apoderar-se da história na época em que os homens se vêem «forçados a encarar sem ilusões as condições da sua existência e as suas relações recíprocas» (Manifesto Comunista). O que há-de tornar dialécticos os operários é a revolução que desta vez vão ter de conduzir eles próprios.

22. Uma parte inevitável do êxito histórico da I.S. levava-a por seu turno a ser contemplada; numa tal contemplação, a crítica sem concessões de tudo quanto existe acabara por ser apreciada positivamente por um sector cada vez mais alargado da própria impotência, que se tornara pró-revolucionária. A força do negativo posta em jogo contra o espectáculo via-se assim também ela servilmente admirada por espectadores. O passado comportamento da I.S. fora inteiramente dominado pela necessidade de agir numa época que ao princípio nem queria ouvir falar de tal coisa. Rodeada pelo silêncio, a I.S. não dispunha de nenhum apoio, sendo muitos elementos da sua actividade recuperados contra ela conforme iam surgindo. Precisava por isso de atingir o momento em que pudesse ser julgada, não «com base nos aspectos superficialmente escandalosos de certas manifestações em que se revela, mas sim com base na sua verdade central essencialmente escandalosa» (I.S. n." 11, Outubro de 1967). A tranquila afirmação do extremismo mais geral, bem como as muitas exclusões dos situacionistas ineficazes ou indulgentes, foram as armas da I.S. para este combate; e não para se tomar uma autoridade ou um poder. Mostrava-se pois legítimo o tom de categórica altivez bastante empregue nalgumas formas da expressão situacionista; tanto por força da imensidade da tarefa, como também, sobretudo, porque esse tom cumpriu a sua função, permitindo que a tarefa fosse continuada com êxito. Deixou porém de convir quando a I.S. se viu reconhecida por uma época que já não considera inverosímil o seu projecto(2); e foi justamente porque a I.S. conseguira tal coisa que este tom se tomou então, para nós e porventura até para os espectadores, fora de moda. A vitória da I.S. é sem dúvida aparentemente tão discutível como a que o movimento proletário já alcançou só por ter recomeçado a guerra de classes - a parte visível da crise que emerge no espectáculo não se equipara nada à sua profundidade -, e tal como esta vitória, ficará sempre em suspenso até chegarem ao fim os tempos pré-históricos; mas para quem sabe «ouvir a erva a crescer» essa vitória e também indiscutível. A teoria da I.S. transmitiu-se às massas. Já não pode ser liquidada na sua primitiva solidão. É óbvio que pode ainda ser falsificada, mas em condições muito diferentes. Nenhum pensamento histórico pode imaginar-se antecipadamente garantido contra toda e qualquer incompreensão ou falsificação. Como esta teoria nem sequer pretende contribuir com um sistema definitivamente coerente e realizado, ainda menos pensaria apresentar-se de maneira tão perfeitamente rigorosa que a estupidez e a má fé ficassem vedadas a quem lidasse com ela por no seu texto se impor invariavelmente uma leitura verdadeira. Semelhante pretensão idealista só se apoia a um dogmatismo, sempre condenado a fracassar, apresentando-se logo o dogmatismo como a falência inaugural de quejando pensamento. As lutas históricas, que corrigem e melhoram qualquer teoria deste género, são igualmente o terreno dos redutores erros de interpretação, tal como o são, com frequência, das recusas interesseiras de se aceitar o sentido mais unívoco. A verdade, num caso destes, só pode impor-se ao tomar-se força prática. Só manifesta que é verdade por apenas precisar das mais ínfimas forças práticas para destroçar outras bem maiores. De modo que, se a teoria da I.S., doravante, for ainda incompreendida ou abusivamente traduzida, como por vezes aconteceu às de Marx ou Hegel, ela há-de saber ressurgir em toda a sua autenticidade, sempre que historicamente soe a sua hora, a começar por hoje mesmo. Saímos da época em que podíamos irremediavelmente ser falsificados ou apagados, porque a nossa teoria beneficia doravante, para bem e para mal, da colaboração das massas.



GUY DEBORD e GIANFRANCO SANGUINETTI

Extraído de La Véritable scission dans l' Internationale, Paris, 1972.

(1) Alusão ao movimento revolucionário que ocorreu na Polónia em 1980-82, durante O qual o poder de Estado foi dissolvido pelas lutas sociais.

(2) «Quando lemos ou relemos os números da I.S., é de facto surpreendente constatarmos a que ponto e quantas vezes estes energúmenos exprimiram juízos ou expuseram pontes de vista que a seguir, concretamente, foram verificados.» - Claude Roy, "Les Desesperados de I’ espoir (Le Nouvel Observateu, 8-2-71). (N. dos A.)