A IDEOLOGIA MATERIALIZADA

A SOCIEDADE DO ESPECTÁCULO

GUY DEBORD

Capitulo IX

A IDEOLOGIA MATERIALIZADA

A consciência de si é em si e para si quando e porque ela é em si e para si para uma outra consciência de si; quer dizer que ela não é senão enquanto ser reconhecido.

Hegel - Fenomenologia do Espírito

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A ideologia é a base do pensamento duma sociedade de classes, no curso conflitual da história. Os factos ideológicos não foram nunca simples quimeras, mas a consciência deformada das realidades, e, enquanto tais, factores reais exercendo, por sua vez, uma real acção deformada; tanto mais que a materialização da ideologia, que arrasta consigo o êxito concreto da produção económica autonomizada, na forma do espectáculo, confunde praticamente com a realidade social uma ideologia que pôde talhar todo o real segundo o seu modelo.

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Quando a ideologia, que é a vontade abstracta do universal, e a sua ilusão, se encontra legitimada pela abstracção universal e pela ditadura efectiva da ilusão na sociedade moderna, ela já não é a luta voluntarista do parcelar, mas o seu triunfo. Daí a pretensão ideológica adquirir uma espécie de fastidiosa exactidão positivista: ela já não é uma escolha histórica, mas uma evidência. Numa tal afirmação, os nomes particulares das ideologias desvaneceram-se. Mesmo a parte de trabalho propriamente ideológica ao serviço do sistema já não se concebe senão enquanto reconhecimento duma «base epistemológica» que se pretende para além de qualquer fenómeno ideológico. A própria ideologia materializada está sem nome, tal como está sem programa histórico enunciável. Quer isto dizer que a história das ideologias acabou.

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A ideologia, que toda a sua lógica interna levava à «ideologia total», no sentido de Mannheim, despotismo do fragmento que se impõe como pseudo-saber dum todo petrificado, visão totalitária, é agora realizada no espectáculo imobilizado da não-história. A sua realização é também a sua dissolução no conjunto da sociedade. Com a dissolução prática desta sociedade deve desaparecer a ideologia, o último contra-senso que bloqueia o acesso à vida histórica.

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O espectáculo é a ideologia por excelência, porque expõe e manifesta na sua plenitude a essência de qualquer sistema ideológico: o empobrecimento, a submissão e a negação da vida real. O espectáculo é, materialmente, «a expressão da separação e do afastamento entre o homem e o homem». O «novo poderio do embuste» que se concentrou aí tem a sua base nesta produção pela qual «com a massa dos objectos cresce... o novo domínio dos seres estranhos aos quais o homem está submetido». É o estádio supremo duma expansão que virou a necessidade contra a vida. «A necessidade de dinheiro é portanto a verdadeira necessidade produzida pela economia política, e a única necessidade que ela produz» (Manuscritos económico-filosóficos). O espectáculo alarga a toda a vida social o princípio que Hegel, na Realphilosophie de Iena, concebe como o do dinheiro; é «a vida do que está morto movendo-se em si própria».

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Ao contrário do projecto resumido nas Teses sobre Feuerbach (a realização da filosofia na práxis que supera a oposição entre o idealismo e o materialismo), o espectáculo conserva ao mesmo tempo, e impõe no pseudoconcreto do seu universo, os caracteres ideológicos do materialismo e do idealismo. O aspecto contemplativo do velho materialismo, que concebe o mundo como representação e não como actividade, e que finalmente idealiza a matéria, está realizado no espectáculo, onde as coisas concretas são automaticamente senhoras da vida social. Reciprocamente, a actividade sonhada do idealismo realiza-se igualmente no espectáculo pela mediação técnica de signos e de sinais, que finalmente materializam um ideal abstracto.

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O paralelismo entre a ideologia e a esquizofrenia estabelecido por Gabel (A Falsa Consciência) deve ser inserido neste processo económico de materialização da ideologia. O que a ideologia já era, a sociedade acabou por ser. A desinserção da práxis e a falsa consciência antidialéctica que a acompanha, eis o que é imposto a cada hora da vida quotidiana submetida ao espectáculo; que é necessário compreender como uma organização sistemática do «desfalecimento da faculdade de encontro» e como sua substituição por um facto alucinatório social: a falsa consciência do encontro, a «ilusão do encontro». Numa sociedade em que ninguém pode já ser reconhecido pelos outros, cada indivíduo toma-se incapaz de reconhecer a sua própria realidade. A ideologia está em sua casa; a separação construiu o seu mundo.

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«Nos quadros clínicos da esquizofrenia, diz Gabel, decadência da dialéctica da totalidade (tendo como forma extrema a dissociação) e decadência da dialéctica do devir (tendo como forma extrema a catatonia) parecem bem solidárias. A consciência espectadora, prisioneira dum universo estreitado, limitada pelo écran do espectáculo, para trás do qual a sua vida foi deportada, não conhece mais do que os interlocutores fictícios que Ihe falam unilateralmente da sua mercadoria e da política da sua mercadoria. O espectáculo, em toda a sua extensão, é o seu «sinal do espelho». Aqui se põe em cena a falsa saída dum autismo generalizado.

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O espectáculo que é a extinção dos limites do moi(*) e do mundo pelo esmagamento do moi(*) que a presença-ausência do mundo assedia, é igualmente a supressão dos limites do verdadeiro e do falso pelo recalcamento de toda a verdade vivida sob a presença real da falsidade que a organização da aparência assegura. Aquele que sofre passivamente a sua sorte quotidianamente estranha é, pois, levado a uma loucura que reage ilusoriamente a essa sorte, ao recorrer a técnicas mágicas. O reconhecimento e o consumo das mercadorias estão no centro desta pseudo-resposta a uma comunicação sem resposta. A necessidade de imitação que o consumidor sente é precisamente a necessidade infantil, condicionada por todos os aspectos da sua despossessão fundamental. Segundo os termos que Gabel aplica a um nível patológico completamente diferente, a necessidade anormal de representação compensa aqui um sentimento torturante de estar à margem da existência.

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Se a lógica da falsa consciência não pode reconhecer-se veridicamente a si própria, a procura da verdade crítica sobre o espectáculo deve ser também uma critica verdadeira. É-lhe praticamente necessário lutar entre os inimigos irreconciliáveis do espectáculo e admitir estar ausente lá onde eles estão ausentes. São as leis do pensamento dominante, o ponto de vista exclusivo da actualidade, que reconhece a vontade abstracta da eficácia imediata, quando ela se lança nos compromissos do reformismo ou da acção comum dos resquícios pseudo-revolucionários. Aí, o delírio reconstituiu-se na própria posição que pretende combatê-lo. Pelo contrário, a crítica que vai para além do espectáculo deve saber esperar.

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Emancipar-se das bases materiais da verdade invertida, eis no que consiste a auto-emancipacão da nossa época. Esta «missão histórica de instaurar a verdade no mundo», nem o indivíduo isolado, nem a multidão atomizada, submetida às manipulações, a podem realizar, mas ainda e sempre a classe que é capaz de ser a dissolução de todas as classes, ao reduzir todo o poder à forma desalienante da democracia realizada, o Conselho, no qual a teoria prática se controla a si própria e vê a sua acção. Lá, somente, onde os indivíduos estão «directamente ligados à história universal»; lá, somente, onde o diálogo se estabeleceu para fazer vencer as suas próprias condições.

(*) Mantém-se o original para não alterar a referência analítica donde provem (N.T.).

Fim de "A Sociedade do Espectáculo" de GUY DEBORD