A NEGAÇÃO E O CONSUMO NA CULTURA

A SOCIEDADE DO ESPECTÁCULO

GUY DEBORD

Capitulo VIII

A NEGAÇÃO E O CONSUMO NA CULTURA

Viveremos o suficiente para ver uma revolução política? Nós, os contemporâneos destes Alemães? Meu amigo, você crê o que deseja... Quando julgo a Alemanha segundo a sua história presente, não me objectará que toda a sua história está falsificada e que toda a sua vida pública actual não representa o estado actual do povo. Leia os jornais que queira, convença-se que se não cessa - e você conceder-me-á que a censura não impede ninguém de cessar - de celebrar a liberdade e a felicidade nacional que possuímos...

Ruge - Carta a Marx, Março de 1844

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A cultura é a esfera geral do conhecimento e das representações do vivido na sociedade histórica, dividida em classes; o que se resume em dizer que ela é esse poder de generalização existindo à parte, como divisão do trabalho intelectual e trabalho intelectual da divisão. A cultura desligou-se da unidade da sociedade do mito, «quando o poder de unificação desaparece da vida do homem, e os contrários perdem a sua relação e a sua interacção vivas e adquirem autonomia...» (Diferença entre os sistemas de Fichte e de Schelling). Ao ganhar a sua independência, a cultura começa um movimento imperialista de enriquecimento, que é, ao mesmo tempo, o declínio da sua independência. A história, que cria a autonomia relativa da cultura e as ilusões ideológicas quanto a esta autonomia, exprime-se também como história da cultura. E toda a história conquistadora da cultura pode ser compreendida como a história da revelação da sua insuficiência, como uma marcha para a sua auto-supressão. A cultura é o lugar da procura da unidade perdida. Nesta procura da unidade, a cultura como esfera separada é, ela própria, obrigada a negar-se.

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A luta da tradição e da inovação, que é o princípio do desenvolvimento interno da cultura das sociedades históricas, não pode ser prosseguida senão através da vitória permanente da inovação. A inovação na cultura não é, porém, trazida por nada mais senão pelo movimento histórico total que, ao tomar consciência da sua totalidade, tende à superação dos seus próprios pressupostos culturais e caminha para a supressão de toda a separação.

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O progresso dos conhecimentos da sociedade, que contém a compreensão da história como o coração da cultura, adquire por si próprio um conhecimento sem retorno que é expresso pela destruição de Deus. Mas esta «condição primeira de toda a crítica» é de igual modo a obrigação primeira de uma crítica infinita. Lá onde nenhuma regra de conduta pode já manter-se, cada resultado da cultura a faz avançar para a sua dissolução. Como a filosofia no instante em que conquistou a sua plena autonomia, toda a disciplina tornada autónoma deve desmoronar-se, inicialmente enquanto pretensão de explicação coerente da totalidade social, e, finalmente, mesmo enquanto instrumentação parcelar utilizável dentro das suas próprias fronteiras. A falta de racionalidade da cultura separada é o elemento que a condena a desaparecer, porque, nela, a vitória do racional está já presente como exigência.

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A cultura provinha da história que dissolveu o género de vida do velho mundo, mas enquanto esfera separada, ela não é ainda mais do que a inteligência e a comunicação sensível que continuam parciais numa sociedade parcialmente histórica. Ela é o sentido de um mundo demasiadamente pouco sensato.

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O fim da história da cultura manifesta-se em dois aspectos opostos: o projecto da sua superação na história total e a organização da sua manutenção enquanto objecto morto na contemplação espectacular. Um destes movimentos ligou o seu destino à crítica social e o outro à defesa do poder de classe.

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Cada um dos dois aspectos do fim da cultura existe de um modo unitário, não só em todos os aspectos dos conhecimentos, como em todos os aspectos das representações sensíveis - no que era a arte no sentido mais geral. No primeiro caso, opõem-se a acumulação de conhecimentos fragmentários que se tornam inutilizáveis, porque a aprovação das condições existentes deve finalmente renunciar aos seus próprios conhecimentos, e a teoria da práxis que detém sozinha a verdade de todas ao deter sozinha o segredo da sua utilização. No segundo caso, opõem-se a autodestruição crítica da antiga linguagem comum da sociedade e a sua recomposição artificial no espectáculo mercantil, a representação ilusória do não vivido.

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Ao perder a comunidade da sociedade do mito, a sociedade deve perder todas as referências de uma linguagem realmente comum, até ao momento em que a cisão da comunidade inactiva pode ser superada pelo acesso à comunidade histórica real. A arte, que foi essa linguagem comum da inacção social, no momento em que ela se constitui em arte independente no sentido moderno, emergindo do seu primeiro universo religioso e tomando-se produção individual de obras separadas, conhece, como caso particular, o movimento que domina a história do conjunto da cultura separada. A sua afirmação independente é o começo da sua dissolução.

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O facto de a linguagem da comunicação se ter perdido, eis o que exprime positivamente o movimento de decomposição moderna de toda a arte, o seu aniquilamento formal. O que este movimento exprime negativamente é o facto de uma linguagem comum dever ser reencontrada, já não na conclusão unilateral que para a arte da sociedade histórica chegava sempre demasiado tarde, falando a outros daquilo que foi vivido sem diálogo real, e admitindo esta deficiência da vida, mas que ela deve ser reencontrada na práxis que reúne em si a actividade directa e a sua linguagem. Trata-se de possuir efectivamente a comunidade do diálogo e o jogo com o tempo, que foram representados pela obra poético-artística.

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Quando a arte tornada independente representa o seu mundo com cores resplandecentes, um momento da vida envelheceu e ele não se deixa rejuvenescer com cores resplandecentes. Ele deixa-se somente evocar na recordação. A grandeza da arte não começa a aparecer senão no poente da vida.

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O tempo histórico que invade a arte exprimiu-se antes de tudo na própria esfera da arte, a partir do barroco. O barroco é a arte de um mundo que perdeu o seu centro: a última ordem mítica reconhecida pela Idade Média, no cosmos e no governo terrestre - a unidade da Cristandade e o fantasma de um Império - caiu. A arte da mudança deve trazer em si o princípio efémero que ela descobre no mundo. Ela escolheu, diz Eugénio d’Ors, «a vida contra a eternidade». O teatro e a festa, a festa teatral, são os momentos dominantes da realização barroca, na qual toda a expressão artística particular não toma o seu sentido senão pela sua referência ao décor de um lugar construído, a uma construção que deve ser para si própria o centro de unificação; e este centro é a passagem que está inscrita como um equilíbrio ameaçado na desordem dinâmica de tudo. A importância, por vezes excessiva, adquirida pelo conceito de barroco na discussão estética contemporânea traduz a tomada de consciência da impossibilidade dum classicismo artístico: os esforços a favor dum classicismo ou neoclassicismo normativos, desde há três séculos, não foram senão breves construções factícias falando a linguagem exterior do Estado, da monarquia absoluta ou da burguesia revolucionária vestida à romana. Do romantismo ao cubismo, é finalmente uma arte cada vez mais individualizada da negação, renovando-se perpetuamente até à redução a migalhas e à negação acabada da esfera artística que seguiu o curso geral do barroco. O desaparecimento da arte histórica, que estava ligada à comunicação interna duma elite, que tinha a sua base social semi-independente nas condições parcialmente lúdicas ainda vividas pelas últimas aristocracias, traduz também este facto: que o capitalismo conhece o primeiro poder de classe que se confessa despojado de qualquer qualidade ontológica; e que a raiz do poder na simples gestão da economia é igualmente a perda de toda a mestria humana. O conjunto barroco, que para a criação artística é, em si próprio, uma unidade há já muito tempo perdida, reencontra-se de algum modo no consumo actual da totalidade do passado artístico. O conhecimento e o reconhecimento históricos de toda a arte do passado, retrospectivamente constituída em arte mundial, relativizam-na numa desordem global que constitui, por sua vez, um edifício barroco a um nível mais elevado, edifício no qual devem fundir-se a própria produção de uma arte barroca e todos os seus ressurgimentos. As artes de todas as civilizações e de todas as épocas podem, pela primeira vez, ser todas conhecidas e admiradas em conjunto. É uma «recolecção das recordações» da história da arte que, ao tornar-se possível, é de igual modo o fim do mundo da arte. É nesta época dos museus, quando nenhuma comunicação artística pode já existir, que todos os momentos antigos da arte podem ser igualmente admitidos, porque nenhum deles padece mais da perda das suas condições de comunicação em geral.

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A arte na sua época de dissolução, enquanto movimento negativo que prossegue a superação da arte numa sociedade histórica em que a história não foi ainda vivida é ao mesmo tempo uma arte da mudança e a expressão pura da mudança impossível. Quanto mais a sua exigência é grandiosa, mais a sua verdadeira realização está para além dela. Esta arte é forçosamente de vanguarda, e não é. A sua vanguarda é o seu desaparecimento.

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O dadaísmo e o surrealismo são as duas correntes que marcaram o fim da arte moderna. Elas são, ainda que só de um modo relativamente consciente, contemporâneas do último grande assalto do movimento revolucionário proletário; e o revés deste movimento, que as deixava encerradas no próprio campo artístico de que elas tinham proclamado a caducidade, é a razão fundamental da sua imobilização. O dadaísmo e o surrealismo estão, ao mesmo tempo, historicamente ligados e em oposição. Nesta oposição, que constitui também para cada um a parte mais consequente e radical da sua contribuição, aparece a insuficiência interna da sua crítica, desenvolvida unilateralmente tanto por uma como por outra. O dadaísmo quis suprimir a arte sem a realizar; e o surrealismo quis realizar a arte sem a suprimir. A posição crítica elaborada posteriormente pelos situacionistas mostrou que a supressão e a realização da arte são os aspectos inseparáveis de uma mesma superação da arte.

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O consumo espectacular que conserva a antiga cultura congelada, compreendendo nela a repetição recuperada das suas manifestações negativas, torna-se abertamente no seu sector cultural o que ele implicitamente é na sua totalidade: a comunicação do incomunicável. A destruição extrema da linguagem pode encontrar-se aí insipidamente reconhecida como um valor positivo oficial, pois trata-se de apregoar uma reconciliação com o estado dominante das coisas, no qual toda a comunicação é alegremente proclamada ausente. A verdade crítica desta destruição, enquanto vida real da poesia e da arte modernas, está evidentemente escondida, porque o espectáculo, que tem a função de fazer esquecer a história na cultura, aplica na pseudonovidade dos seus meios modernistas a própria estratégia que o constitui em profundidade. Assim, pode dar-se por nova uma escola de neoliteratura, que simplesmente admite contemplar o escrito para si próprio. Aliás, ao lado da simples proclamação da beleza suficiente da dissolução do comunicável, a tendência mais moderna da cultura espectacular - e a mais ligada à prática repressiva da organização geral da sociedade - procura recompor, através de «trabalhos de conjunto», um meio neo-artístico complexo a partir dos elementos decompostos; nomeadamente, na procura de integração dos detritos ou de híbridos estético-técnicos no urbanismo. Isto é a tradução, no plano da pseu-docultura espectacular, deste projecto geral do capitalismo desenvolvido que visa ocupar-se do trabalhador parcelar como «personalidade bem integrada no grupo», tendência descrita pelos recentes sociólogos americanos (Riesman, Whyte, etc.). É, em toda a parte, o mesmo projecto de uma restruturação sem comunidade.

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A cultura tomada integralmente mercadoria deve tomar-se também a mercadoria vedeta da sociedade espectacular. Clark Kerr, um dos ideólogos mais avançados desta tendência, calculou que o complexo processo de produção, distribuição e consumo dos conhecimentos, açambarca já anualmente 29% do produto nacional nos Estados Unidos; e prevê que a cultura deve desempenhar na segunda metade deste século o papel motor no desenvolvimento da economia, como o automóvel o foi na sua primeira metade, e os caminhos-de-ferro na segunda metade do século precedente.

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O conjunto dos conhecimentos, que continua a desenvolver-se actualmente como pensamento do espectáculo, deve justificar uma sociedade sem justificações, e constituir-se em ciência geral da falsa-consciência, Ela é inteiramente condicionada pelo facto de não poder nem querer pensar na sua própria base material no sistema espectacular.

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O próprio pensamento da organização social da aparência está obscurecido pela subcomunicação generalizada que ele defende. Ele não sabe que o conflito está na origem de todas as coisas do seu mundo. Os especialistas do poder do espectáculo, poder absoluto no interior do seu sistema de linguagem sem resposta, são absolutamente corrompidos pela sua experiência do desprezo e do êxito do desprezo; porque reencontram o seu desprezo confirmado pelo conhecimento do homem desprezível que é realmente o espectador.

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No pensamento especializado do sistema espectacular opera-se uma nova divisão das tarefas, à medida que o próprio aperfeiçoamento deste sistema põe os novos problemas: por um lado, a critica espectacular do espectáculo é empreendida pela sociologia moderna, que estuda a separação com o auxílio dos únicos instrumentos conceptuais e materiais da separação; por outro lado, a apologia do espectáculo constitui-se em pensamento do não-pensamento, em esquecimento titular, da prática histórica, nas diversas disciplinas onde se enraíza o estruturalismo. Porém, o falso desespero da crítica não dialéctica e o falso optimismo da pura publicidade do sistema são idênticos, enquanto pensamento submisso.

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A sociologia que começou a pôr em discussão, inicialmente nos Estados Unidos, as condições de existência resultantes do actual desenvolvimento, se pôde trazer muitos dados empíricos, não conhece de modo algum a verdade do seu próprio objecto, porque ela não encontra nele próprio a crítica que Ihe é imanente. De modo que a tendência sinceramente reformista desta sociologia não se apoia senão na moral, no bom senso, nos apelos à moderação complemente fora de propósito. Uma tal maneira de criticar, porque não conhece o negativo que está no coração do seu mundo, não faz senão insistir na descrição de uma espécie de excedente negativo que parece atravancá-lo deploravelmente à superfície, como uma proliferação parasitária irracional. Esta boa vontade indignada, que mesmo enquanto tal não consegue vituperar senão as consequências exteriores do sistema, julga-se crítica, esquecendo o carácter essencialmente apologético dos seus pressupostos e do seu método.

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Aqueles que denunciam o absurdo ou os perigos do incitamento à dissipação na sociedade da abundância económica, não sabem para que serve a dissipação. Eles condenam com ingratidão, em nome da racionalidade económica, os bons guardas irracionais sem os quais o poder desta racionalidade económica se desmoronararia. E Boorstin, por exemplo, que descreve em A Imagem o consumo mercantil do espectáculo americano, nunca atinge o conceito de espectáculo, porque julga poder deixar fora deste desastroso exagero a vida privada, ou a noção de «honesta mercadoria». Não compreende que a própria mercadoria fez as leis cuja aplicação «honesta» deve provocar tanto a realidade distinta da vida privada, como a sua reconquista ulterior pelo consumo social das imagens.

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Boorstin descreve os excessos de um mundo que se nos tornou estranho, como excessos estranhos ao nosso mundo. Mas a base «normal» da vida social, à qual ele se refere implicitamente quando qualifica o reino superficial das imagens, em termos de julgamento psicológico e moral, como o produto das «nossas extravagantes pretensões», não tem nenhuma realidade nem no seu livro nem na sua época. É porque a vida humana real de que fala Boorstin está para ele no passado, nele compreendido o passado da resignação religiosa, que ele não pode compreender toda a profundidade de uma sociedade da imagem. A verdade desta sociedade não e mais do que a negação desta sociedade.

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A sociologia, que julga poder isolar do conjunto da vida social uma racionalidade industrial, funcionando à parte, pode ir ao ponto de isolar do movimento industrial global as técnicas de reprodução e transmissão. É assim que Boorstin toma como causa dos resultados que descreve, o infeliz encontro, quase fortuito, de um demasiado grande aparelho técnico de difusão das imagens e de uma demasiado grande propensão dos homens da nossa época ao pseudo-sensacional. Assim, o espectáculo seria devido ao facto de o homem moderno ser demasiado espectador. Boorstin não compreende que a proliferação dos «pseudo-acontecimentos » pré-fabricados que ele denuncia deriva deste simples facto: que os próprios homens, na realidade maciça da actual vida social, não vivem acontecimentos. É porque a própria história persegue a sociedade moderna como um espectro, que se encontra a pseudo-história construída a todos os níveis do consumo da vida, para preservar o equilíbrio ameaçado do actual tempo congelado.

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A afirmação da estabilidade definitiva de um curto período de congelamento do tempo histórico é a base inegável, inconsciente e conscientemente proclamada, da actual tendência a uma sistematização estruturalista. O ponto de vista em que se coloca o pensamento anti-histórico do estruturalismo é o da eterna presença de um sistema que nunca foi criado e que nunca acabará. O sonho da ditadura de uma estrutura prévia inconsciente sobre toda a práxis social pôde ser abusivamente tirada dos modelos de estruturas elaborados pela linguística e pela etnologia (e mesmo pela análise do funcionamento do capitalismo), modelos já abusivamente compreendidos nessas circunstâncias, simplesmente porque um pensamento universitário de quadros médios, rapidamente satisfeitos, pensamento integralmente submerso no elogio maravilhado do sistema existente, reduz com vulgaridade toda a realidade à existência do sistema.

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Como em qualquer ciência social histórica, é preciso ter sempre em vista, para a compreensão das categorias «estruturalistas», que as categorias exprimem formas de existência e condições de existência. Assim como não se aprecia o valor de um homem pela concepção que ele tem de si próprio, não se pode apreciar - e admirar - esta sociedade determinada, aceitando como indiscutivelmente verídica a linguagem que ela fala a si mesma. «Não se pode apreciar semelhantes épocas de transformação pela consciência que a época tem dessa transformação; pelo contrário, deve explicar-se a consciência com a ajuda das contradições da vida material...» A estrutura é filha do poder presente. O estruturalismo é o pensamento garantido pelo Estado, que pensa as condições presentes da «comunicação» espectacular como um absoluto. A sua maneira de estudar o código das mensagens em si mesmo não é, sendo, o produto e o reconhecimento duma sociedade, em que a comunicação existe sob a forma duma cascata de sinais hierárquicos. De modo que não é o estruturalismo que serve para provar a validade trans-histórica da sociedade do espectáculo; é, pelo contrário, a sociedade do espectáculo, impondo-se como realidade maciça, que serve para provar o sonho frio do estruturalismo.

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Sem dúvida, o conceito crítico de espectáculo pode também ser vulgarizado numa qualquer fórmula oca da retórica sociológico-política para explicar e denunciar tudo abstractamente e, assim, servir para a defesa do sistema espectacular. Porque é evidente que nenhuma ideia pode conduzir para além do espectáculo, mas somente para além das ideias existentes sobre o espectáculo. Para destruir efectivamente a sociedade do espectáculo, são necessários homens pondo em acção uma força prática. A teoria crítica do espectáculo não é verdadeira senão ao unificar-se à corrente prática da negação na sociedade, e esta negação, o retomar da luta de classe revolucionária, tomar-se-á consciente de si própria ao desenvolver a crítica do espectáculo, que é a teoria das suas condições reais, das condições práticas da opressão actual, e desvenda inversamente o segredo daquilo que ela pode ser. Esta teoria não espera milagres da classe operária. Ela encara a nova formulação e a realização das exigências proletárias como uma tarefa de grande alento. Para distinguir artificialmente luta teórica e luta prática - porque, na base aqui definida, a própria constituição e a comunicação duma tal teoria já não pode conceber-se sem uma prática rigorosa - é certo que o percurso obscuro e difícil da teoria critica deverá também ser o loto do movimento prático, actuando à escala da sociedade.

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A teoria crítica deve comunicar-se na sua própria linguagem. É a linguagem da contradição, que deve ser dialéctica na sua forma como o é no seu conteúdo. Ela é crítica da totalidade e critica histórica. Não é um «grau zero da escrita» mas a sua reinversão. Não é uma negação do estilo, mas o estilo da negação.

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Mesmo no seu estilo, a exposição da teoria dialéctica é um escândalo e uma abominação segundo as regras da linguagem dominante, e também para o gosto que elas educaram, porque no emprego positivo dos conceitos existentes ela inclui ao mesmo tempo a inteligência da sua fluidez reencontrada, da sua destruição necessária.

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Este estilo, que contém a sua própria crítica, deve exprimir a dominação da crítica presente sobre todo o seu passado. Por ele, o modo de exposição da teoria dialéctica é testemunha do espírito negativo que nela reside. «A verdade não é como o produto no qual não mais se encontra o traço do instrumento» (Hegel). Esta consciência teórica do movimento, na qual o próprio traço do movimento deve estar presente, manifesta-se pela reinversão das relações estabelecidas entre os conceitos e pelo desvio de todas as aquisições da crítica anterior. A reinversão do genitivo é esta expressão das revoluções históricas, consignada na forma do pensamento, que foi considerada como o estilo epigramático de Hegel. O jovem Marx, ao preconizar, conforme o uso sistemático que dela tinha feito Feuerbach, a substituição do sujeito pelo predicado, atingiu o emprego mais consequente desse estilo insurreccional que, da filosofia da miséria, tira a miséria da filosofia. O desvio submete à subversão as conclusões críticas passadas que foram petrificadas em verdades respeitáveis, isto é, transformadas em mentiras. Kierkegaard já disto tinha feito deliberadamente uso, ao associar-Ihe a sua própria denúncia: «Mas não obstante as voltas e reviravoltas, como o doce volta sempre para o armário, tu acabas sempre por introduzir-Ihe uma pequena palavra que não é tua e que perturba pela recordação que desperta» (Migalhas filosóficas). É a obrigação da distancia para com o que foi falsificado em verdade oficial que determina este emprego do desvio, assim confessado por Kierkegaard no mesmo livro: «Um só reparo ainda a propósito das tuas numerosas alusões visando todas a censura que eu associo aos meus dizeres, expressões obtidas por empréstimo. Não o nego aqui e também não o esconderei que era voluntário e que numa próxima sequência a esta brochura, se algum dia a escrever, tenho a intenção de chamar o objecto pelo seu verdadeiro nome e de revestir o problema de um trajo histórico».

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As ideias melhoram-se. O sentido das palavras participa nisso. O plagiato é necessário. O progresso implica-o. Ele acerca-se estreitamente da frase de um autor, serve-se das suas expressões, suprime uma ideia falsa, substitui-a pela ideia justa.

208

O desvio é o contrário da citação, da autoridade teórica sempre falsificada, pelo próprio facto de ela se ter tornado citação; fragmento arrancado ao seu contexto, ao seu movimento, e, finalmente, à sua época, como referência global e à opção precisa que ela constituía no interior desta referência, exactamente reconhecida ou errónea. O desvio é a linguagem fluida da anti-ideologia. Ele aparece na comunicação que sabe não poder deter nenhuma garantia em si própria e definitivamente. Ele é, no mais alto ponto, a linguagem que nenhuma referência antiga e supracrítica pode confirmar. É, pelo contrário, a sua própria coerência, em si próprio e para com os factos praticáveis, que pode confirmar o antigo núcleo de verdade que ele volta a trazer consigo. O desvio não fundou a sua causa sobre nada de exterior à sua própria verdade como crítica presente.

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O que, na formulação teórica, se apresenta abertamente como desviado, ao desmentir toda a autonomia durável da esfera do teórico expresso, ao fazer intervir aí, por esta violência, a acção que perturba e varre toda a ordem existente, faz lembrar que esta existência do teórico não é nada em si mesma, e não tem que conhecer-se senão com a acção histórica, e a correcção histórica que é a sua verdadeira fidelidade.

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A negação real da cultura é a única a conservar-lhe o sentido. Ela já não pode ser cultural. Assim, ela é aquilo que permanece de algum modo ao nível da cultura, embora numa acepção totalmente diferente.

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Na linguagem da contradição, a crítica da cultura apresenta-se unificada: enquanto ela domina o todo da cultura - o seu conhecimento como a sua poesia - e enquanto não se separa mais da crítica da totalidade social. É somente esta critica teórica unificada que vai ao encontro da prática social unificada.

GUY DEBORD