Leonel Santos - EPITÁFIO PARA O TRABALHO




O herói está morto

E o mundo já não é igual

Consignou-se que era um herói imortal

Mas finou-se, e já não faz sentido

Que alguém não aceite que tenha morrido

E à sua volta um ruído enorme

Vocifere que ele apenas dorme

Está morto o herói, e inútil será

Gritar que viva a quem está morto já

Resta agora fazer-lhe humanamente

Conforme o seu estatuto um funeral decente

Mas se às costas do herói emérito

Jaz o mundo presente e o pretérito

Há que erguer um duplo mausoléu

E sepultar ainda o mundo que ele ergueu

Gritar por si nesta hora tardia

Só pode ser loucura ou ser demagogia

De quem não se conforma ou quer voltar atrás

Quando a razão nos manda deixar o morto em paz

Seu jugo foi longo e foi pesado

Mas no seu caixão de herói mitificado

Enterram-se as promessas do seu império vão

Promessas e sonhos que já nem sonhos são

Os milhões de escravos que encheram os porões

De naus negreiras, tumbeiros ou galeões

Conversos em manadas como irracionais

Rumo aos cerrados e aos canaviais

Os grupos de campónios quase infinitos

Fábricas, operários, sirenes aos gritos

A servidão maciça, abrupta, irracional

Em nome do sublime progresso universal

Tudo se calou, o mundo é diferente

Morreu o TRABALHO ingloriamente

Esse gigante que nos prometia

Uma Nova Ordem e a Terceira Via

E nos deixa agora a guerra e a rapina

E a moral da selva por disciplina

Jazendo inerte, frio e já sem cor

Como qualquer escravo de que foi senhor

Que reze a direita enlevada em fé

A ver se o defunto volta a pôr-se em pé

Que grite a esquerda de noite e de dia

A ver se o acorda com a gritaria



Repense-se o mundo, o TRABALHO morreu

E com ele o mundo que nos prometeu.



Lisboa, Março de 2005

Leonel Santos