Leonel Santos - O HOMEM PREDADOR





Entrelaça a aranha em qualquer parte

Uma teia simples com destreza e arte

E apesar de tudo subtil e forte

Onde incauta presa encontra a morte

E assim a aranha vai mantendo a vida

Até que um dia é também comida

E todo o animal, segundo a natureza

É simultaneamente predador e presa

Numa luta perpétua, severa, irracional

Que, apesar de tudo, ainda assim, é natural

Mas onde cada ser se ataca ou se defende

Conforme pode, ou conforme entende

Uma vez que não tem outra saída

Que lhe permita aqui continuar a vida

Assim as águias, nas altaneiras brenhas

Espreitam cá em baixo, as cobras entre as lenhas

Caçando o mourão, o gafanhoto, o rato

Que por sua vez, caçam também no mato

E na selva bruta ninguém é diferente

Comer ou ser comido é simplesmente

Continuar a vida ou ficar sem ela

Por isso é que o leopardo devora a gazela

E o leão, o lobo, o tigre, o jaguar

Deixam de viver se não puderem matar

Esta é a Moral da Natureza-mãe

Que o Sistema humano acolheu bem

Mas se o irracional à força bruta

Junta a experiência em prol da luta

O Predador humano vai muito mais além

Equipado com os dotes racionais que tem

E faz o que jamais alguma besta fez

Que é matar aos milhões de cada vez

E desce mais ainda na sua predação

Matando a própria espécie, enquanto a besta não

O seu intelecto em vez do elevar

E nobrece a besta por não raciocinar

E este Predador ainda agora

Acaba de aumentar os meios de outrora

Percebendo que a sua linguagem

Lhe podia trazer maior vantagem

Que além de guerras brutas e sinistras

Podia usar palavras altruístas

E prègar o Bem e a Humanidade

Condições que a besta não tem capacidade

Nem como ele a arte e os motivos

Para comerciar mortos e vivos

E no topo da cadeia alimentar

Com o queijo e a faca para o cortar

Trocou a palavra Guerra por Defesa

Para enganar assim melhor a presa

E na sua avidez seguiu em frente

Sempre atrás da besta moralmente

Impondo velhos mitos bafientos

Cobertos na poeira de outros tempos

Quando a espada era a mãe da guerra

E o Sol andava ainda em redor da Terra

Com a teologia estulta e soberana

A jurar-nos que ela era plana

E que um deus nos via lá do céu estrelado

Com um diabo que foi seu empregado

Falando de milhões de milagres e santos

Que apareciam na Terra por todos os cantos

Gente que morria e que depois de morta

Aparecia por cá batendo à porta

Foi nesta altura que muitos predadores

Passaram a chamar-se bispos e pastores

Agarrados a reis e a tiramos

E a outros predadores também humanos

Queimando e calando os que disseram

As coisas tal e qual como elas eram

E que gritam agora contra a depravação

Do Sistema que fizeram com a sua própria mão

Porque os velhos mitos já não trazem oiro

Nem carne de porco, nem chouriço moiro

Nem galinhas gordas, bom vinho e bom pão

Talhas de azeite e meio-alqueires de grão

Presa dum Sistema sem freio e sem medidas

A predação humana é o velho Midas

E as suas presas as peças de um tesoiro

Que dia a dia querem fazer em oiro

Alquimista velho de sonhos infantis

Manipulador boçal de metais vis

Ilusório ente dum sonho passado

Ontem no Trabalho, hoje no Mercado

O Sistema foi sempre o deus da lenda antiga

Com os olhos maiores do que a barriga

Mas ao invés da teia da pequena aranha

Que surpreende e prende a presa que apanha

O Predador humano caiu e se prendeu

No próprio fio da teia que teceu

Cego do Valor e cego da Grandeza

Acabou passando de predador a presa

Presa de ele próprio, caduco e incapaz

De andar em frente ou de voltar atrás

Debate-se agora coma um pequeno insecto

Preso no perverso Valor do seu projecto

Autófago Valor, insano, irracional

Contra o qual agora nada pode e vale

Vendo fugir-lhe a vida e fugir-lhe a espécie

E revoltar-se a Terra onde a Vida cresce

Num rumo abrupto e adverso à Paz

Com o Mercado à frente e a Guerra atrás

Derradeiros e vis escravos do Valor

Que é deveras do Mundo o Predador.

Quem sabe a besta silenciosamente

À noite, lá na selva, não se ri da gente!



Leonel Santos

Lisboa, Setembro 2008
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