Leonel Santos - DO FETICHE


Aquele fetichismo que fez jus

À sapiência antiga dos tiranos

Dispersa em tempos como luz

Na mente primitiva dos humanos

Ainda nos persegue e nos conduz

Apesar de passados largos anos



Hoje com o nome diferente

De Civilização alta e pomposa

Esse fetiche velho descendente

Dessa era antiga e fabulosa

Nos dirige ainda infelizmente

Na mesma via cega e tortuosa



Se a nossa longa caminhada

Nos parece engenhosa e sapiente

Se usamos a lança e a espada

E temos hoje a bomba-inteligente

No fundo não andamos nada

Só fizemos a morte andar em frente



As bombas que temos e granadas

Os mísseis, a espingarda e o canhão

E outras armas mais sofisticadas

Com que se faz da morte o ganha-pão

São apenas peças destinadas

A pôr o lucro acima da razão



A Civilização que apregoamos

É uma selva densa e insegura

Onde nos vendemos e compramos

Escravos da oferta e da procura

E os próprios braços que ofertamos

Os não quer a nova escravatura



Atolados num Sistema mais impuro

Que o dos próprios seres irracionais

Sem termos passado, e o futuro

Não sabemos se ele existe mais

Gritamos louca mente no escuro

Que somos reis dos outros animais



A África resistente á escravidão

E á humilhação colonial

Sufoca agora á destruição

Á fome e á doença civilizacional

Porque a suposta Civilização

É a fase aguda do seu velho mal



Pelos quatros pontos cardeais

Batida pelos ventos a humana galé

É um barco velho sem leme nem arrais

Sem saber onde vai nem saber quem é

Tentando lobrigar um fabuloso cais

Com a cegueira à proa e o abismo à ré



E se o Mercado tem continuamente

De ultrapassar barreiras e fracassos

Se é preciso haver bastante gente

Para haver consumo e sobram braços

Há sempre uma bomba-inteligente

Para cortar inúteis em pedaços



Neste labirinto a que chamamos vida

Gerida por leis cruas e irracionais

Onde o Valor, fetiche e suicida

É o deus de todos os mortais

Os lucros da miséria, essa enorme ferida

Alimenta na sombra milhões de canibais



Psicólogos pios e padres benfeitores

Almas piedosas da maior pureza

Solidariedades de todas as cores

Agarram a miséria, como agarram a presa

Nas escarpas andinas as garras dos condores

E outras rapaces da mesma natureza



De vez em quando ouvimos falar

Que ardeu um lar com alguns velhinhos

Estava tudo em ordem, mas houve um azar

Ás três da manhã, segundo os vizinhos

Mas nenhum milhafre nos ousou contar

Que os pobres morreram por estar sozinhos



Na vida global do mundo fetichista

O crime é o suporte de toda a estrutura

E a miséria humana dessa longa lista

Tem lobos famintos à sua procura

Com a pele de cordeiro e voz altruísta

Que devoram viva cada criatura



Crianças, velhos, doentes ou drogados

E até os mortos não ficam isentos

O bem fetichista tem olhos dotados

Da visão do lince, e trazem-lhe os ventos

O cheiro dos haveres dos mais desgraçados

Como ao abutre o cheiro dos seus alimentos



Na Justiça, o roubo e a corrupção

Movimentam hoje milhares de milhões

Porém o corrupto é sempre um cidadão

E os que roubam são sempre os ladrões

Mas quer lhe mudem os nomes ou não

O roubo é no Sistema os seus pulmões



O fetichismo impede o pensamento

A não ser em termos de Mercado

Ou em mitos que são seu instrumento

E o Homem é aqui domesticado

Como seja um cavalo ou um jumento

E é chamado depois civilizado



E delapidando a Natureza

Diz-se dela rei, mas antes está

Subordinado à sua realeza

Que é quem lhe permite andar por cá

E em jargão de guerra e de defesa

Ninguém defende ninguém do mal que há



Presa do fetiche e do engano

Onde não entra a luz nem tem acento

A sublime razão que o faz humano

O Homem não tem mais valimento

Antes arrasta o mundo ao caos insano

Quando o mito lhe tolhe o pensamento



Porém, como ente racional

Sempre tem na frente duas vias

Uma que é humana e natural

Outra que excede as bestas mais bravias

E é esta fase aguda e terminal

A do fetiche atroz dos nossos dias



Morto o trabalho e enterrado

Pôs-nos o fetiche a descoberto

Os abissais perigos do Mercado

Inútil é gritarmos no deserto

Se o valor da Razão não for usado

A via da loucura está mais perto.



Leonel Santos

Maio de 2008