Aquele fetichismo que fez jus
À sapiência antiga dos tiranos
Dispersa em tempos como luz
Na mente primitiva dos humanos
Ainda nos persegue e nos conduz
Apesar de passados largos anos
Hoje com o nome diferente
De Civilização alta e pomposa
Esse fetiche velho descendente
Dessa era antiga e fabulosa
Nos dirige ainda infelizmente
Na mesma via cega e tortuosa
Se a nossa longa caminhada
Nos parece engenhosa e sapiente
Se usamos a lança e a espada
E temos hoje a bomba-inteligente
No fundo não andamos nada
Só fizemos a morte andar em frente
As bombas que temos e granadas
Os mísseis, a espingarda e o canhão
E outras armas mais sofisticadas
Com que se faz da morte o ganha-pão
São apenas peças destinadas
A pôr o lucro acima da razão
A Civilização que apregoamos
É uma selva densa e insegura
Onde nos vendemos e compramos
Escravos da oferta e da procura
E os próprios braços que ofertamos
Os não quer a nova escravatura
Atolados num Sistema mais impuro
Que o dos próprios seres irracionais
Sem termos passado, e o futuro
Não sabemos se ele existe mais
Gritamos louca mente no escuro
Que somos reis dos outros animais
A África resistente á escravidão
E á humilhação colonial
Sufoca agora á destruição
Á fome e á doença civilizacional
Porque a suposta Civilização
É a fase aguda do seu velho mal
Pelos quatros pontos cardeais
Batida pelos ventos a humana galé
É um barco velho sem leme nem arrais
Sem saber onde vai nem saber quem é
Tentando lobrigar um fabuloso cais
Com a cegueira à proa e o abismo à ré
E se o Mercado tem continuamente
De ultrapassar barreiras e fracassos
Se é preciso haver bastante gente
Para haver consumo e sobram braços
Há sempre uma bomba-inteligente
Para cortar inúteis em pedaços
Neste labirinto a que chamamos vida
Gerida por leis cruas e irracionais
Onde o Valor, fetiche e suicida
É o deus de todos os mortais
Os lucros da miséria, essa enorme ferida
Alimenta na sombra milhões de canibais
Psicólogos pios e padres benfeitores
Almas piedosas da maior pureza
Solidariedades de todas as cores
Agarram a miséria, como agarram a presa
Nas escarpas andinas as garras dos condores
E outras rapaces da mesma natureza
De vez em quando ouvimos falar
Que ardeu um lar com alguns velhinhos
Estava tudo em ordem, mas houve um azar
Ás três da manhã, segundo os vizinhos
Mas nenhum milhafre nos ousou contar
Que os pobres morreram por estar sozinhos
Na vida global do mundo fetichista
O crime é o suporte de toda a estrutura
E a miséria humana dessa longa lista
Tem lobos famintos à sua procura
Com a pele de cordeiro e voz altruísta
Que devoram viva cada criatura
Crianças, velhos, doentes ou drogados
E até os mortos não ficam isentos
O bem fetichista tem olhos dotados
Da visão do lince, e trazem-lhe os ventos
O cheiro dos haveres dos mais desgraçados
Como ao abutre o cheiro dos seus alimentos
Na Justiça, o roubo e a corrupção
Movimentam hoje milhares de milhões
Porém o corrupto é sempre um cidadão
E os que roubam são sempre os ladrões
Mas quer lhe mudem os nomes ou não
O roubo é no Sistema os seus pulmões
O fetichismo impede o pensamento
A não ser em termos de Mercado
Ou em mitos que são seu instrumento
E o Homem é aqui domesticado
Como seja um cavalo ou um jumento
E é chamado depois civilizado
E delapidando a Natureza
Diz-se dela rei, mas antes está
Subordinado à sua realeza
Que é quem lhe permite andar por cá
E em jargão de guerra e de defesa
Ninguém defende ninguém do mal que há
Presa do fetiche e do engano
Onde não entra a luz nem tem acento
A sublime razão que o faz humano
O Homem não tem mais valimento
Antes arrasta o mundo ao caos insano
Quando o mito lhe tolhe o pensamento
Porém, como ente racional
Sempre tem na frente duas vias
Uma que é humana e natural
Outra que excede as bestas mais bravias
E é esta fase aguda e terminal
A do fetiche atroz dos nossos dias
Morto o trabalho e enterrado
Pôs-nos o fetiche a descoberto
Os abissais perigos do Mercado
Inútil é gritarmos no deserto
Se o valor da Razão não for usado
A via da loucura está mais perto.
Leonel Santos
Maio de 2008