LEONEL SANTOS - O Monstro Difuso


Nascido algures na bruma de outras eras

Diferente eu sou de todas as quimeras

De todos os dragões alados do Levante

De olhos sanguíneos e boca flamejante

De todas as serpentes astutas e infernais

De lendas bolorentas e ancestrais

Da Hidra de Lerna de cabeças várias

De todos os mostrengos e todas alimárias

Não sou delírio vão, nem grito de profetas

Nem génio de pintor, nem sonho de poetas

Mas sou realidade... e impossível

Será que exista outra mais terrível

Meus braços, invisíveis e diferentes

De todos os monstros e todos os viventes

São os vossos braços... e vos digo mais

Ando com as pernas com que vós andais

Depois que percorri os séculos um a um

Cheguei enfim aqui... a lado nenhum

Tive pais, padrinhos e parentes

Sou filho de sábios, génios e valentes

Usei chapéu alto e usei gravata

Fui socialista e fui fascista, fui padre e fui pirata

Esclavagista e liberal, anarquista e democrata

Meu nome não importa, minha missão é esta

Sou do mundo a derradeira besta

A Lei morreu, o Ordem se esfumou

E a Nova Ordem é a desordem que eu sou

O Absurdo total, o Crime do mundo

O pântano e a voragem onde me afundo

A miragem doirada de toda a podridão

O Tartufo supremo da Civilização

A tragédia que avança... o lamaçal

A flor sublime da estrumeira global

Em mim paz e guerra são iguais

Dar-vos-ei a que achar que vale mais

E caso valha mais a gente morta

Que morra quem morrer que eu não me importa

Arrancarei olhos, rins e corações

A gente sadia em troca de milhões

E em troca de milhões farei também

A Justiça e a Lei que me convém

Lançarei no lixo o pão que não se come

Enquanto for matando o mundo à fome

A corrupção será sempre o meu estandarte

A minha vida, a minha força, a minha arte

Depois que reduzi o mundo à escravatura

Vos grito a liberdade, o progresso e a fartura

Porque também a própria linguagem

Serve os meus interesses e traz a minha imagem

Mas tudo o que eu prometo é canto de sereias

Porque só a guerra me percorre as veias

Esse monstro que devora os inocentes

São as minhas garras, a força dos meus dentes

É o desespero de um monstro condenado

A morrer matando quem não é culpado

Farei prostitutas e drogados aos milhões

Porque eu próprio sou a droga das nações

Nações que no fundo não passam de utopia

Porque não há fronteiras na minha hegemonia

Sou eu o desespero que cada um transporta

A vida desiludida que já nasce morta

Sou eu o Terrorismo, a ultima invenção

Dos génios do Mercado p`ra minha salvação

Sem terrorismo, anti-terrorismo, fome e guerra

Não poderei eu, um minuto mais, habitar a Terra

Não sou americano, nem árabe nem judeu

Não sou homem-bomba, nem crente, nem ateu

Sou apenas eu, e ninguém mais forte

Poderá deter-me a não ser a morte

Até na paz breve que a vida vos consente

Farei eu morrer milhões de gente

Porque eu sou a morte e não sou a vida

Sou o aborto, o anti-aborto, a pedofilia e a sida

O desemprego e a falência, a insegurança e as prisões

Os Tribunais, o Direito, a Justiça e os Ladrões

E sou ainda na gíria universal

O Iluminismo, a Civilização e a Moral

Sou mil polícias a cada esquina da cidade

Obedecendo cegos à minha vontade

Sou a Democracia e a Modernidade

Sou o dinheiro e o Mercado. Sou o Valor

Não tenho pátria, nem raça, nem cor

Todos os deuses antigos e modernos

Todos os paraísos e todos os infernos

Pobres e ricos, palhaços, presidentes e reis

Têm um valor... e esse Valor são as minhas leis

Nada tenho de humano, sou cego, surdo e mudo

Indiferente à dor, à guerra, à morte, a tudo

Sou o Valor global, real e soberano

Que transforma em besta cada ser humano.


Leonel Santos

Lisboa, Março de 2004