Os situacionistas e a automatização

É bastante espantoso que quase ninguém, até agora, tenha ousado levar o conceito de automatização às suas ultimas consequências. O facto mostra que não há verdadeiras perspectivas. Parece-nos até que os engenheiros, os peritos e os sociólogos tentam introduzir à socapa a automatização na sociedade.

E no entanto a automatização encontra-se hoje no âmago do problema da dominação socialista exercida sobre a produção e da preeminência dos ócios sobre o tempo de trabalho. A questão da automatização é a que contém mais possibilidades positivas e negativas.

O objectivo do socialismo é a abundância: o maior número de bens para o maior número de pessoas, coisa que estatisticamente implica a redução até ao improvável da irrupção do imprevisto. O crescimento do número dos bens reduz o valor de cada um deles. Esta desvalorização de todos os bens humanos, até atingirem um estado de neutralidade por assim dizer perfeita, será o resultado inevitável dum desenvolvimento puramente científico do socialismo. É lamentável que muitos intelectuais não ultrapassem a ideia da reprodução mecânica, limitando-se a preparar a adaptação do homem a este futuro incolor e simetrizado. De forma que os artistas, especializados na investigação do único, hostilizam, em número crescente, o socialismo. Ao invés, os políticos do socialismo vão alimentando a suspeita que hostiliza todas as manifestações artísticas vigorosas ou originais.

Agarrados às suas posições conformistas, uns e outros mostram um certo mau humor perante a automatização, que pode pôr profundamente em causa as suas concepções económicas e culturais. A propósito da automatização, verifica-se aliás em todas as tendências de «vanguarda» um derrotismo - ou uma subestimação, pelo menos - dos elementos positivos inscritos num futuro cuja proximidade os começos da automatização bruscamente revelam. Isto ao mesmo tempo que as forças reaccionárias fazem alarde dum optimismo parvo. Há uma anedota significativa. O ano passado, na revista Quatrième Intemationale, relatava o militante marxista Livio Maitan que um padre italiano adiantara já a ideia duma segunda missa semanal, exigida pelo aumento dos tempos livres. Retorquia Maitan: «O erro consiste em considerar que o homem da nova sociedade será igual ao da presente sociedade, quando de facto ele terá necessidades e exigências completamente diferentes, que ainda mal podemos conceber». O erro de Maitan reside em deixar para esse vago futuro as novas exigências que «mal pode conceber». A função dialéctica do espírito consiste em conduzir o possível para formas desejáveis. Maitan esquece que sempre «os elementos duma sociedade nova se formaram na antiga sociedade», conforme reza o Manifesto Comunista. Certos elementos duma nova existência devem estar já em formação entre nós - no campo da cultura -, competindo-nos a nós servirmo-nos deles para tornarmos o debate apaixonante.

O socialismo, que tende para a mais completa libertação das energias e capacidades em cada indivíduo, será obrigado a ver na automatização uma tendência antiprogressista em si, transformada em tendência progressista unicamente pela relação que estabeleça com novos estímulos capazes de exteriorizar as energias latentes do homem. Se é verdade, como pretendem os cientistas e os técnicos, que a automatização constitui um novo meio de libertação do homem, ela tem de implicar uma superação das anteriores actividades humanas. Coisa que obriga à imaginação activa do homem a ultrapassar a realização da própria automatização. Ora onde vemos nós essas tais perspectivas capazes de tornar o homem senhor e não escravo da automatização?

Louis Salleron, no seu estudo intitulado L’Automation, explica que esta, «como quase sempre sucede em matéria de progresso [...] acrescenta mais do que substitui ou suprime». Ora o que é que a automatização, em si mesma, vem acrescentar às possibilidades da acção humana? Ficámos a saber que ela suprime completamente o homem no seu próprio terreno.

A crise da industrialização é uma crise de consumo e de produção. A crise de produção é mais importante do que a crise de consumo, visto esta ser condicionada pela primeira. Transposto para o piano individual, isto equivale à tese segundo a qual é mais satisfatório dar do que receber, mais interessante poder acrescentar do que suprimir. A automatização tem assim duas perspectivas opostas: retira ao indivíduo qualquer possibilidade de acrescentar seja o que for de pessoal à produção automatizada, que é uma fixação do progresso, e ao mesmo tempo economiza energias humanas amplamente libertas das actividades reprodutivas e não-criativas. O valor da automatização depende pois dos projectos que a ultrapassem e que libertem novas energias humanas num plano superior.

A actividade experimental na cultura dispõe nos nossos dias deste campo incomparável. Sendo a atitude derrotista a demissão perante as possibilidades da época, sintomática das antigas vanguardas, que querem ficar, como escreve Edgar Morin, «a roer um osso do passado». Um surrealista, Benayoun, diz no n.º 2 da revista Le Surréalisme même, última expressão deste movimento: «A questão dos lazeres já atormenta os sociólogos [...] Deixarão de clamar por técnicos, passando a exigir palhaços, cantores, bailarinas, homens-borracha. Um dia de trabalho por seis dias de descanso: o equilíbrio entre o sério e o fútil, o ócio e o labor, corre até o risco de se ver desfeito um dia destes [...] e o "trabalhador", na sua desocupação, ver-se-á cretinizado por uma televisão convulsionaria, invasora, de ideias curtas, em busca de talentos». Este surrealista não vê que uma semana de seis dias de descanso não provocará um «desequilíbrio» entre o fútil e o sério mas sim uma mudança de natureza do sério e do fútil. Não espera senão equívocos, ridículas viragens ao avesso do mundo determinado que ele concebe, à imagem do surrealismo envelhecido, como uma espécie de intangível comédia revisteira. Por que razão terá de haver neste futuro uma hipertrofia das baixezas do presente? E por que razão haverá nele «falta de ideias»? Quererá isso dizer que Ihe faltarão ideias surrealistas de 1924 melhoradas em 1936? É provável. Ou significa que os imitadores do surrealismo estão com falta de ideias? Bem sabemos que assim é.

Os novos ócios parecem um abismo que a sociedade actual só pensa em atafulhar, multiplicando os pseudojogos de irrisórios passa-tempos. Mas esses ócios são ao mesmo tempo a base sobre a qual pode edificar-se a mais grandiosa construção cultural nunca imaginada. Este objectivo está evidentemente fora do círculo de interesses dos partidários da automatização. Sabemos até que é antagónico à tendência directa da automatização. Se quisermos discutir com os engenheiros, temos de passar para o seu próprio campo de interesses.

Maldonado,(1) que dirige actualmente em Ulm a Hochschule fur Gestaltung [Universidade de Artes Aplicadas], explica que o desenvolvimento da automatização está comprometido por não se ver na juventude entusiasmo nenhum para se lançar na via politécnica, com excepção dos especialistas dos próprios fins da automatização, desprovidos duma perspectiva geral sobre a cultura. Maldonado, porém, que justamente deveria mostrar esta perspectiva geral, ignora-a por completo: a automatização só pode desenvolver-se rapidamente a partir do momento em que o seu objectivo se torne uma perspectiva contrária ao seu próprio estabelecimento, e caso se saiba realizar uma tal perspectiva geral em conformidade com o desenvolvimento da automatização.

Maldonado propõe o contrário: estabelecer-se primeiro a automatização e depois a sua utilização. Poderíamos discutir sobre este modo operatório se o objectivo não fosse precisamente a automatização; porque esta não constitui uma acção num dado domínio capaz de provocar uma anti-acção. O que ela constitui é a neutralização de um domínio, que acabaria por neutralizar também os campos exteriores se ao mesmo tempo não fossem empreendidas acções contraditórias.

Pierre Drouin, ao falar no Le Monde de 5-1-57 da extensão dos hobbies como realização das virtualidades cuja utilização os trabalhadores já não podem encontrar na sua actividade profissional, conclui que em cada homem «há um criador adormecido». Esta velha banalidade tem hoje uma verdade abrasadora se a associarmos às reais possibilidades materiais da nossa época. O criador adormecido tem de despertar, podendo perfeitamente o seu estado de vigília chamar-se situacionista.

A ideia de estandardização é um esforço para reduzir e simplificar o maior número das necessidades humanas com a maior igualdade. Depende de nós que a estandardização abra ou não domínios de experiência mais interessantes do que aqueles que fecha. Segundo o resultado, poder-se-á desembocar num embrutecimento total da vida humana ou na possibilidade de descobrir em permanência novos desejos. Mas estes novos desejos não hão-de manifestar-se sozinhos, no quadro opressivo do nosso mundo. É necessária uma acção comum para os detectar, os manifestar e os realizar.

  • ASGER JORN

I.S. n.º 1, Junho de 1958

(1) O professor Thomas Maldonado. Jorn já anteriormente contestara as posições deste funcionalista: «Se Maldonado tivesse razão, se a partir de agora as acções revolucionarias no âmbito do ensino fossem impossíveis fora do contexto oficial, isso significaria que mais nenhuma revolução educativa seria possível, porque nenhum sistema é capaz de se renovar por dentro. Este ponto de vista é uma traição definitiva da tradição da antiga Bauhaus, um revoltante abandono de tudo o que foi conquistado desde Jean-Jacques Rousseau.» (Pour laforme, 1954-57.)