Questões preliminares à construção duma situação

«A construção de situações começa após o desmoronamento moderno da noção de espectáculo. É fácil ver a que ponto se encontra associado à alienação do velho mundo o principio mesmo do espectáculo: a não-intervenção. Inversamente, vemos como as mais válidas investigações revolucionárias na cultura procuraram destruir a identificação psicológica do espectador com o herói, para levarem este espectador à actividade [...] A situação é feita para ser vivida pelos seus construtores. O papel do "público", senão passivo pelo menos apenas figurativo, deverá diminuir constantemente, aumentando, em contrapartida, a porção dos que não devem ser chamados actores, mas sim, num novo sentido da expressão, pessoas vivas.» - Relatório sobre a construção das situações

A nossa concepção duma «situação construída» não se limita a um emprego unitário de meios artísticos que concorram para um ambiente, por maiores que possam ser a extensão espacio-temporal e o vigor deste ambiente. A situação é simultaneamente uma unidade de comportamento temporal. E feita de gestos contidos no cenário de um momento. Estes gestos resultam do cenário e de si mesmos. Produzem outras formas de cenário e outros gestos. Como será possível orientar tais forças? Não vamos contentar-nos com ensaios empíricos de meios ambientes de que, por provocação mecânica, esperaríamos surpresas. A direcção realmente experimental da actividade situacionista consiste em estabelecer, a partir de desejos mais ou menos claramente reconhecidos, um campo de actividade temporária favorável a estes desejos. Só o seu estabelecimento pode levar à clarificação dos primitivos desejos e ao aparecimento confuso de novos desejos, cuja raiz material será precisamente a nova realidade constituída pelas construções situacionistas.

E pois necessário encararmos uma espécie de psicanálise com fins situacionistas, devendo cada participante nesta aventura formular desejos precisos de ambientes para os realizar, contrariamente aos objectivos das correntes oriundas do freudismo. Cada qual deverá procurar aquilo que ama, aquilo que o atrai (neste caso, também, ao contrário de certas tentativas da escrita moderna, a de Leiris, por exemplo, o que nos interessa não é a estrutura individual do nosso espírito nem a explicação da sua formação, é a sua aplicação possível em situações construídas). Com este método, podem recensear-se elementos constitutivos das situações a edificar, bem como projectos para a dinâmica destes elementos.

Uma tal investigação só tem sentido para indivíduos que actuem, na pratica, com vista a uma construção de situações. Todos eles são, neste caso, espontaneamente ou de maneira consciente e organizada, pré-situacionistas, ou seja, indivíduos que sentiram a necessidade objectiva desta construção através duma mesma carência da cultura e das mesmas expressões da sensibilidade experimental imediatamente anterior. Aproximam-nos uma especialização e a sua pertença, nesta especialização, a uma mesma vanguarda histórica. É portanto provável que encontremos em todos um grande número de temas comuns ao desejo situacionista, que se diversificara cada vez mais ao dar-se a passagem para uma fase de actividade real.

A situação construída é forçosamente colectiva, devido à sua preparação e ao modo como se desenrola. É provável, no entanto, pelo menos durante o período das experiências iniciais, que um dado indivíduo exerça uma certa preeminência numa dada situação, sendo ele o seu encenador. A partir dum projecto de situação, estudado por uma equipa de investigadores, na qual ocorra a combinação, por exemplo, do encontro comovedor de algumas pessoas durante uma noite, será sem dúvida necessário fazer a destrinça entre, por um lado, um director ou encenador, encarregado de coordenar os elementos prévios de construção do cenário e também de prever certas intervenções nos acontecimentos (devendo este último processo ser partilhado entre vários responsáveis que ignorem mais ou menos os planos de intervenção de outrem), e, por outro lado, os agentes directos que vivam a situação, que tenham participado na criação do projecto colectivo e trabalhado na composição prática do ambiente, e alguns espectadores passivos estranhos ao trabalho de construção, os quais deverão ser reduzidos à acção.

Naturalmente, a relação entre o director e as «pessoas vivas da situação criada não pode tomar-se uma relação de especializações. Trata-se apenas da subordinação momentânea de toda uma equipa de situacionistas ao responsável duma experiência isolada. Estas perspectivas, ou o seu vocabulário provisório, não devem levar a crer que se trataria duma continuação do teatro. Pirandello e Brecht mostraram a destruição do espectáculo teatral, bem como algumas reivindicações que estão para além dela. Podemos dizer que a construção das situações substituirá o teatro apenas no sentido em que a construção real da vida terá substituído cada vez mais a religião. Visivelmente, o principal domínio que vamos substituir e realizar é a poesia, que se queimou na vanguarda do nosso tempo e desapareceu por completo.

A realização real do indivíduo, também na experiência artística que os situacionistas descobrem, passa forçosamente pela soberania colectiva do mundo; antes dela não existem ainda indivíduos, apenas sombras percorrendo as coisas que caoticamente Ihes são transmitidas por outros. Em situações ocasionais encontramos indivíduos separados que vagueiam. As suas emoções divergentes neutralizam-se, mantendo a sólida ambiência do enfado. Arruinaremos estas condições fazendo aparecer em certos pontos o sinal incendiário dum jogo superior.

Na nossa época, o funcionalismo(1) que é uma expressão necessária do avanço técnico, procura eliminar inteiramente o jogo, sendo os partidários do industrial design levados a lamentar o apodrecimento da sua acção devido à tendência que o homem demonstra pelo jogo. Esta tendência, abjectamente explorada pelo comércio industrial, põe de imediato em causa os mais úteis resultados, exigindo novas apresentações. Parece-nos evidente que não se deve encorajar a permanente renovação artística dos frigoríficos. Mas o funcionalismo moralizador nada pode contra isso. A única saída progressiva consiste em libertar noutros campos, e mais amplamente, a tendência para o jogo. Antes disso, as ingénuas indignações da teoria pura do industrial design não poderão impedir o facto profundo, por exemplo, de o automóvel individual ser principalmente um jogo imbecil, e acessoriamente um meio de transporte. Contra todas as formas regressivas do jogo, que são o seu retorno a estádios infantis - sempre ligados às políticas de reacção -, impõe-se apoiar as formas experimentais de um jogo revolucionário.

Internationale Situationniste n.º I, Junho de 1958

(1) Referencia à tendência funcionalista sobretudo manifesta na arquitectura, no urbanismo e no design, da Bauhaus (Waiter Gropius) à Escola de Chicago, passando por Le Corbusier e Oscar Niemeyer, pilares do funcionalismo contemporâneo A teoria do espaço funcional desenvolvida por estes autores já servia, nos anos 70, de alibi «modernizador» ao sistema comercial imobiliário.