O começo duma época

«Viveremos nós bastante para ver uma revolução política? nós os contemporâneos destes alemães? Meu amigo, você acredita naquilo que deseja» - escrevia Arnold Ruge a Marx, em Março de 1844; e quatro anos depois a revolução lá estava. Como exemplo divertido duma inconsciência histórica que produz intemporalmente os mesmos efeitos, sustentada com maior substância por causas similares a infeliz frase de Ruge foi citada em epígrafe n'A Sociedade do Espectáculo, livro publicado em Dezembro de 1967; seis meses depois aconteceu o movimento das ocupações, o maior movimento revolucionário que houve em França desde a Comuna de Paris.

A maior greve geral que paralisou a economia dum pais industrial avançado, a primeira greve geral e selvagem da História;- as ocupações revolucionárias e os esboços de democracia directa; o apagamento cada vez mais completo do poder estatal durante quase duas semanas; a verificação de toda a teoria revolucionária do nosso tempo, e até, aqui e ali, o começo da sua realização parcial; a mais importante experiência do movimento proletário moderno em vias de se constituir em todos os países na sua forma acabada, bem como o modelo que este doravante tem de superar - eis o que essencialmente foi o movimento francês de Maio de 1968, sendo esta desde já a sua vitória.

Mais adiante abordaremos as fraquezas e as falhas do movimento, naturais consequências da ignorância e da improvisação, bem como do peso morto do passado, mesmo onde o movimento pôde afirmar-se da melhor maneira; consequências, sobretudo, das separações que conseguiram defender, à justa, todas as forças congregadas para a manutenção da ordem capitalista, tendo-se os enquadramentos burocráticos político-sindicais dedicado a essa tarefa melhor do que a polícia na altura em que o conflito se tornou, para o sistema uma questão de vida ou de morte. Enumeremos porém, desde já, as índoles do movimento das ocupações no seu lugar central, onde se mostrou mais livre para traduzir, em palavras e actos, o seu conteúdo. Nesse lugar proclamou os seus objectivos muito mais explicitamente que qualquer outro espontâneo movimento revolucionário da História; objectivos esses muito mais radicais e presentes do que os enunciados, nos seus programas, pelas organizações revolucionárias do passado, mesmo nos seus melhores momentos.

O movimento das ocupações foi o súbito retorno do proletariado como classe histórica, alargado a uma maioria dos assalariados da sociedade moderna e tendendo sempre à abolição efectiva das classes e do salariato. Este movimento representou a redescoberta da história, ao mesmo tempo colectiva e individual, tornou patente o sentido da intervenção possível sobre a história e do acontecimento irreversível, com a percepção de que «nada seria como dantes»; as pessoas encaravam, divertidas, a existência estranha que levavam oito dias antes, aquela sua sobrevivência ultrapassada. Era a critica generalizada de todas as alienações, de todas as ideologias e do conjunto da antiga organização da vida real, a paixão da generalização e da unificação. Num tal processo, a propriedade foi negada, vendo-se cada pessoa em casa fosse onde fosse. O desejo desconhecido do dialogo, da palavra integralmente livre, o apreço pela comunidade verdadeira, tinham encontrado o seu terreno nos edifícios abertos aos encontros e na luta comum; os telefones, que figuravam entre os raros meios técnicos ainda em funcionamento, e as andanças erráticas de tantos emissários e viajantes, em Paris e pelo país fora, entre as instalações ocupadas, as fábricas e as assembleias, mostravam o emprego real da comunicação. O movimento das ocupações foi evidentemente a rejeição do trabalho alienado; e foi por isso a festa, o jogo, a presença real das homens e do tempo. Foi igualmente a rejeição de qualquer autoridade, especialização, de qualquer desapossamento hierárquico; foi a rejeição do Estado e, por isso mesmo, dos partidos e sindicatos, bem como dos sociólogos e dos professores, da moral repressiva e da medicina. Todos quantos o movimento, num encadeamento fulminante - «Depressa», dizia apenas talvez um dos mais belos escritos nas paredes -, tinha despertado, desprezavam radicalmente as suas antigas condições de existência, desprezando por isso os indivíduos que tinham trabalhado para nisso os manterem, desde vedetas da televisão aos urbanistas. Conforme as ilusões stalinistas de muitos deles se iam dilacerando, nas suas formas diversamente adoçadas, de Castro a Sartre, iam também caindo em ruínas as rivais e solidárias imposturas de toda uma época. A solidariedade internacional ressurgiu espontaneamente, lançando-se para a luta em grande número os trabalhadores estrangeiros e acorrendo a França revolucionários da Europa. A importância da participação das mulheres em todas as formas de luta foi um sinal decisivo da profundidade revolucionária do movimento das ocupações. A libertação dos costumes deu um grande passo. O movimento foi também a crítica, ainda parcialmente ilusória, da mercadoria (no seu inepto disfarce sociológico de «sociedade do consumo»), e foi já uma rejeição da arte, rejeição esta que ainda não se afirmara como negação histórica (embora na pobre fórmula abstracta de «imaginação ao poder» sem meios para pôr em prática este poder de tudo reinventar, e que, por falta de poder, mostrou falta de imaginação). O ódio afirmado em toda a parte pelos recuperadores ainda não possuía o saber teórico-prático de como eliminar os neo-artistas e neo-directores políticos os neo-espectadores do próprio movimento que os desmentia. Se a crítica em actos do espectáculo da não-vida não pôde chegar à sua superação revolucionária, foi porque a tendência «espontaneamente conselhista» do levantamento de Maio se mostrou desfasada em relação, a todos os meios concretos, entre os quais a consciência teórica e organizativa que hão-de permitir-lhe traduzir-se em poder, sendo ela o único poder.

Escarremos de passagem nos comentários redutores e aviltantes e nos falsos testemunhos dos sociólogos, dos reformados do marxismo e de todos os doutrinários do velho ultra-esquerdismo em conserva ou do ultra-modernismo servil da sociedade espectacular; porque ninguém, entre os que viveram este movimento, poderá dizer que ele não continha tudo o que aqui registamos.

Escrevíamos nós, em Março de 1966, no n.º 10 da Internationale Situationniste: "Aquilo que em várias das nossas asserções parece ousado, são coisas que enunciamos com a certeza de as vermos confirmadas por uma demonstração histórica de inegável peso.» Não podíamos ter sido mais eloquentes.

Naturalmente, nada tínhamos profetizado. Disséramos o que estava presente: as condições materiais duma nova sociedade tinham desde há muito sido produzidas, a velha sociedade mantivera-se em toda a parte modernizando consideravelmente a sua opressão, e, ao desenvolver as suas contradições com uma abundância cada vez maior, o movimento proletário vencido voltava para um segundo assalto, mais consciente e total. Bem entendido, tudo isto que a História e o presente mostravam com evidência, muitos o pensavam e alguns até o diziam, mas abstractamente, e por isso no vazio, sem eco, sem possibilidade de intervenção. O mérito dos situacionistas consistiu simplesmente em reconhecer e designar os novos pontos de aplicação da revolta na sociedade moderna (pontos estes que não excluem os antigos, mas, pelo contrário, os repõem): urbanismo, espectáculo, ideologia, etc. Na medida em que esta tarefa foi realizada radicalmente, pôde por vezes suscitar, e em todo o caso reforçou grandemente, certas circunstâncias de revolta prática. Esta não perdeu eco, porque a critica sem concessões tivera muito poucos portadores nos esquerdismos da época precedente. Se muitas pessoas fizeram aquilo que nós escrevemos, foi por termos registado essencialmente o negativo vivido por tantos outros antes de nós e também por nós mesmos. O que assim alcançou a consciência, na Primavera de 1968, foi simplesmente o que estava adormecido na noite da sociedade espectacular», cujas Feiras e Circos alardeavam apenas um eterno cenário positivo. Quanto a nós, «coabitáramos com o negativo», segundo o programa que em 1962 havíamos formulado (cf. «Geopolítica da hibernação», p. 85). E se referimos «méritos», não é para nos aplaudirem, é tão-só para esclarecer quanto possível, outros que irão agir do mesmo modo.

Todos os que fechavam os olhos a esta «crítica em pleno só podiam contemplar, na força inabalável da dominação a sua própria renúncia. O seu «realismo», anti-utópico não era sinónimo de realidade, da mesma maneira que uma esquadra da polícia ou a Sorbonne não são mais reais que estes mesmos edifícios incendiados ou ocupados. Quando os fantasmas subterrâneos da revolução total se ergueram, estendendo a sua força por todo o país, foram as autoridades do velho mundo que pareceram ilusões fantasmáticas sumindo-se à luz do dia. Muito simplesmente, após trinta anos de miséria, que na história das revoluções não contaram mais do que um mês, chegou este Maio que em si resume trinta anos.

Transformar os nossos desejos em realidade é um trabalho histórico preciso, exactamente oposto ao da prostituição intelectual que enxerta, em qualquer realidade existente, as suas ilusões de permanência. É o caso, por exemplo, do Lefebvre já citado no número anterior desta revista (Outubro de 1967), aventurando-se no seu livro Posições Contra os Tecnocratas (Gonthier) para chegar a uma conclusão categórica cuja pretensão científica não durou seis meses: «Os situacionistas [···] não propõem uma utopia concreta, propõem uma utopia abstracta. Imaginam eles que um belo dia as pessoas vão pôr-se a olhar umas para as outras e dizer "Basta! Já chega de labor e tédio! Acabemos com isto!", entrando assim na Festa Imortal, na criação das situações? O que aconteceu uma vez, na madrugada de 18 de Marco de 1871, foi uma conjuntura que não voltará a ocorrer.» Deste jeito, Lefebvre via ser-lhe atribuída uma certa influência intelectual quando apenas copiava sub-repticiamente algumas teses radicais da I.S. (ver a reedição do nosso panfleto de 1963, Para o caixote do lixo da História!)(1), relegando para o passado a verdade duma critica que na realidade provinha mais do presente do que da reflexão historicista do nosso autor. Alertava os seus leitores para a ilusão de uma luta presente poder voltar a deparar com tais resultados. Não se julgue que Henri Lefebvre é o único pensador que os actos ridicularizaram definitivamente; os que evitavam ter expressões tão cómicas como as suas pensavam da mesma maneira. Sob aquela sua emoção sentida em Maio, todos os investigadores do nada histórico admitiram ninguém ter previsto o que acontecera. Convém todavia registarmos à parte todas as seitas de «bolcheviques ressuscitados», a respeito das quais é justo dizer-se que durante os últimos trinta jamais tinham cessado de prever a iminência da revolução de 1917. Mas também estes se enganaram, e muito: aquilo não era 1917 e eles nem sequer eram precisamente Lénin. Quanto aos restos do, ultra-esquerdismo não trotskista, estes precisavam, pelo menos, crise económica de grande envergadura. Subordinavam todo e qualquer momento revolucionário ao regresso desta crise; e não lhes cheirava a nada. Agora que reconheceram a existência duma crise revolucionária em Maio, precisam de provar que nela estava presente, durante a Primavera de 68, a tal crise económica invisível. A isso se aplicam sem medo do ridículo, produzindo esquemas sobre o aumento do desemprego e dos preços. Deste modo, para eles a crise económica deixou de ser a realidade objectiva, terrivelmente visível, tão descrita e vivida até 1929, transformando-se numa espécie de presença eucarística que Ihes vai sustentando a religião.

Da mesma maneira que seria necessário reeditar toda a colecção da I.S para mostrar a que ponto estas pessoas se enganaram antes seria também necessário escrever um grosso volume para percorrer as parvoíces e as meias confissões que desde Maio produziram. Limitemo-nos a citar o pitoresco jornalista Gaussen, que julgava poder sossegar os leitores do Le Monde, a 9 de Dezembro de 1966, escrevendo, a respeito da meia dúzia de doidos situacionistas, autores do escândalo de Estrasburgo, que estes depositavam «uma confiança messiânica na capacidade revolucionária das massas e na sua aptidão à liberdade». Hoje, bem entendido, a aptidão à liberdade de Frédéric Gaussen não progrediu um milímetro, mas cá o temos de novo, no mesmo jornal, a 29 de Janeiro de 1969, perturbadíssimo ao deparar por todo o lado com «o sentimento de que o sopro revolucionário é universal. «Alunos do ensino secundário em Roma, estudantes universitários em Berlim, "revoltosos" em Madrid, "órfãos" de Lénin em Praga, contestatários em Belgrado, todos se lançam ao ataque do mesmo mundo, o Velho Mundo...» E Gaussen, empregando quase as mesmas palavras de antes, atribui agora a todas estas multidões revolucionárias a mesma «crença quase mística na espontaneidade criadora das massas».

Não queremos estender-nos triunfalmente sobre os destroços de todos os nossos adversários intelectuais; não é porque este «triunfo», na realidade simplesmente o triunfo do movimento revolucionário moderno, não tenha um significado importante, é por causa da monotonia do assunto e da estrepitosa evidência da sentença pronunciada sobre todo o período que culminou em Maio: o reaparecimento da luta de classes directa, o reconhecimento de objectivos revolucionários actuais, o ressurgimento da História (antes, era a subversão da Sociedade existente que parecia inverosímil; agora é a sua manutenção). Em vez de sublinharmos o que já foi verificado, o mais importante, a partir daqui, reside em enunciar os novos problemas; criticar O movimento de Maio e inaugurar a prática da nova época.

Em todos os outros países, a busca recente, de resto até agora confusa, duma critica radical do capitalismo moderno (privado ou burocrático) não tinha ainda saído da base estreita que ela adquirira num sector do meio estudantil. Bem pelo contrário, e apesar do que simulam crer o governo e os jornais, bem como os ideólogos da sociologia modernista, o movimento de Maio não foi um movimento de estudantes. Foi um movimento revolucionário proletário, ressurgido de meio século de esmagamento, e, normalmente, desapossado de tudo; o seu desgraçado paradoxo consistiu em só poder falar e ganhar figura, de modo concreto, no terreno eminentemente desfavorável duma revolta de estudantes: nas ruas de que se apoderaram os amotinados do Bairro Latino em Paris e nos edifícios ocupados nesta zona, em geral dependentes da Educação Nacional. Em vez de perdermos tempo com a paródia histórica, efectivamente ridícula, dos estudantes leninistas ou stalinistas pró-chineses que se disfarçavam de proletários e se viam, do mesmo passo, como vanguarda dirigente do proletariado, o que convém retermos, pelo contrário, é que a fracção mais avançada dos trabalhadores, inorganizados e separados por toda a espécie de repressões, foi disfarçada de estudantes pelo imaginário tranquilizador dos sindicatos e da informação espectacular. O movimento de Maio não foi uma qualquer teoria política dos seus executores operários: foi o proletariado activo em busca da sua consciência teórica.

O facto de a sabotagem da Universidade, por alguns jovens revolucionários que na realidade eram notórios anti-estudantes, tanto em Nantes como em Nanterre (referimo-nos aos «Enragés», e não, obviamente, à maioria do «22 de Marco»,(2) que revezou tardiamente a actividade dos primeiros), ter dado ocasião de desenvolver formas de luta directa pelas quais o descontentamento dos operários, sobretudo o dos jovens, já tinha optado nos primeiros meses de 1968 (ern Caen e Redon, por exemplo), não foi uma circunstância nada fundamental; esta aliás, em nada podia prejudicar o movimento. Nocivo foi que a greve, lançada como greve selvagem, contra todas as vontades e manobras dos sindicatos, tenha depois sido controlada pelos sindicatos. Estes aceitaram a greve que não tinham conseguido evitar, segundo a prática habitual de qualquer sindicato perante uma greve selvagem; com a diferença de a terem agora de aceitar em todo, pais. E ao aceitarem esta greve geral «não oficial», viram-se aceites por ela. Ficaram por isso de posse das entradas das fábricas, isolando do movimento real, ao mesmo tempo, a imensa maioria dos operários como um todo e cada uma das empresas relativamente às restantes. De modo que a acção mais unitária e mais radical na sua crítica, e até então nunca vista, foi em simultâneo uma soma de isolamentos e um festival de banalidades nas reivindicações oficialmente mantidas.

Da mesma maneira que se viram obrigados a deixar a greve geral afirmar-se em fragmentos cujo desenlace foi uma quase unanimidade, os sindicatos trataram de liquidar a greve fragmentariamente, fazendo aceitar em cada ramo, pelo terrorismo da chantagem e as ligações monopolizadas, as migalhas que a 27 de Maio tinham justamente sido rejeitadas por todos. A greve revolucionária foi assim reduzida a um equilíbrio de guerra fria entre as burocracias sindicais e os trabalhadores. Os sindicatos reconheceram a greve com a condição de a greve reconhecer tacitamente, pela sua passividade na prática, que não serviria para nada. Os sindicatos não «perderam uma oportunidade de ser revolucionários, pela simples razão de em nada o serem, dos estalinistas aos reformistas emburguesados. E não perderam uma oportunidade de ser reformistas com grandes resultados porque a situação era revolucionariamente perigosa demais para correrem risco de brincar com ela - para se dedicarem, até, a tirar partido dela. O que eles muito visivelmente queriam, era que aquilo acabasse com toda a urgência, fosse a que preço fosse. Neste capitulo, hipocrisia stalinista, a que os sociólogos semi-esquerdistas se juntaram de forma admirável (cf. Coudray, (3) La Brèche, Seuil, 1968), Fingiu, para utilização em momentos tão excepcionais, um extraordinário respeito pela competência dos operários, pela sua experiente «decisão», partindo do princípio, com o mais fantástico cinismo, que esta fora claramente debatida, adoptada com conhecimento de causa e identificada de maneira absolutamente unívoca - porque, finalmente os operários sabiam na ponta da unha o que queriam, visto «não querem a revolução»! Mas os obstáculos e as mordaças que os burocratas tiveram de acumular, suando angústia e mentira, perante a pretensa não vontade revolucionária das operários, constituem a melhor da sua vontade real, desarmada e temível. Só esquecendo a totalidade histórica do movimento da sociedade moderna alguém se pode deleitar com o positivismo circular que julga ver a ordem existente como coisa racional, por elevar a sua «ciência» ao ponto de considerar esta ordem sucessivamente do lado da pergunta e da resposta. E assim que o mesmo Coudray assinala o seguinte: «se temos estes sindicatos só podemos obter 5%, e se são 5% que queremos obter, para isto estes sindicatos bastam». Pondo de parte a questão de saber o que serão as suas intenções na vida real e nos interesses pessoais, o que pelo menos falta a todos estes cavalheiros é a dialéctica.

Os operários, que naturalmente tinham - como sempre e em toda parte - excelentes motivos de descontentamento, encetaram a greve selvagem porque sentiram a situação revolucionária criada pelas novas formas de sabotagem na Universidade e pelos sucessivos erros do governo nas suas reacções. Os operários eram obviamente tão indiferentes como nós às formas ou reformas da instituição universitária; mas não o eram, com certeza, à critica da cultura, da paisagem da vida quotidiana do capitalismo avançado, crítica esta que se propagou logo a partir do primeiro rasgão no véu universitário.

Os operários, ao fazerem a greve selvagem, desmentiram os impostores que falavam em seu nome. Na generalidade das empresas, não souberam tomar a palavra veridicamente por sua própria conta, dizendo o que queriam. Mas para dizerem o que querem, é antes de mais nada necessário que os trabalhadores criem, pela sua acção autónoma, as condicões concretas, em roda a parte inexistentes, que Ihes permitam falar e agir. A falta, quase em toda a parte, deste diálogo e desta ligação, bem como do conhecimento teórico dos objectivos autónomos da luta de classe proletária (duas categorias de factores que só podem desenvolver-se em conjunto), impediu os trabalhadores de expropriarem os expropriadores da sua vida real. Deste modo, o núcleo avançado dos trabalhadores, em torno do qual se há-de formar a próxima organização revolucionária proletária, apareceu no Bairro Latino na qualidade de parente pobre do «reformismo estudantil», ele próprio, em grande medida, produto artificial da pseudo-informação ou do ilusionismo grupuscular. Eram jovens operários; empregados; trabalhadores de escritórios ocupados; blusões negros e desempregados; alunos revoltados do ensino secundário, muitos deles filhos de operários que o capitalismo moderno recruta para um ensino à pressão destinado a preparar o funcionamento da indústria desenvolvida («Stalinistas, os vossos filhos estão connosco!»); «intelectuais perdidos,» e «catangueses»(4).

I. S. n.º 12 Setembro de 1969

Notas:

1.- Em 1963, no último número da revista Argurnents, que «ignorava» a I.S. ao ponto de nunca a citar, apesar de se servir dela, Henri Lefebvre publicou um texto sobre a Comuna de Paris retomando os temas desenvolvidos pelos situacionistas num ensaio intitulado «Teses sobre a Comuna», em que estes expunham a perspectiva da revolução como uma festa, resultante da espontaneidade popular. Em resposta ao plagio, a I.S. difundiu nessa altura o citado panfleto, denunciando o «respeitável pensador» Lefebvre e a cumplicidade activa da Arguments. Em 1969, no n. 12 da I.S, como comentário à fama de pensador original de que Lefebvre passara a gozar na imprensa na sequência de Maio de 68, a I.S. reproduziu em fac-símile esse panfleto. Com efeito, um livro de Lefebvre em 1965, La Proclamation de la Commune, passara a ser apresentado como a obra qeu mais teria influenciado os estudantes em revolta, a partir, justamente, da noção revolução como festa... Houve entre Lefebvre e os situacionistas influências mútuas, mas este exemplo é revelador da censura especializada exercida sobre a I.S. pelos comentadores profissionais.

2.- Os Enragés foi o grupo que começou a agitação na Universidade de Nanterre e que depois aderiu à I.S. O Movimento do 22 de Março, com base no seu mais mediático membro, o então anarquista Daniel Cohn-Bendit, virá a ser o agrupamento oficial protagonista de Maio 68, que figura nos manuais. O situacionista René Viénet, no seu livro Enragés et siluationnisles dans le mouvement des occupations (redigido em Bruchelas, onde os situacionistas mais comprometidos se tinham exilado, e publicado em Outubro de 1968 na Gallimard), define-o assim: «Todos eles consideravam ser-lhe impossível porem-se de acordo com base num qualquer elemento teórico, contando com a "acção colectiva" para ultrapassarem essa deficiência. [...] Todo o alarido sociológico e jornalístico sobre a "originalidade" do Movimento do 22 de Março esconde facto de que o seu amálgama esquerdista, embora novo em França, era uma cópia directa do S.D.S. (Students for Democratic Society) norte-americano, também ele ecléctico democrático e amiúde infiltrado pelas diversas e antigas seitas esquerdistas»

3.- Um dos pseudónimos de Cornelius Castoriadis (1922-1997), que teve vários outros (Chaulieu, Cardan Delvaux), na época da revista Socialisme olr Barbarie (1949-1965). As relações desta revista com a I.S., embora conflituosas e quase sempre indirectas foram importantes.

4.- " Catangueses" foi o nome dado a ex-mercenários e outros «duros de roer» que participaram nos combates de Abril de 68.

I.S. n.º 12, Setembro de 1969