LENINE E A SUA LENDA
Quanto mais a face embalsamada de Lenine amarelece e se pergaminha, quanto mais a fila dos visitantes à porta do seu mausoléu se prolonga, menos as pessoas se interessam pela verdadeira personagem e pela sua dimensão histórica. Todos os dias, novos monumentos à sua memória se elevam, encenadores fazem dele o herói dos seus filmes, escrevem-se livros a seu respeito, e os pasteleiros russos confeccionam figurinhas de broa de mel com a sua efígie. Mas os traços fluidos dos Lenines de chocolate igualam bem as histórias inexactas e duvidosas que correm a seu respeito. E ainda que o Instituto Lenine publique as suas obras completas, a partir de agora, nada mais significam comparadas com as lendas fabulosas que se desenvolveram em torno do seu nome. A partir do momento em que as pessoas se começaram a interessar pelos botões de colarinho de Lenine, deixaram de ligar importância às suas ideias. Depois já, cada qual talha o seu próprio Lenine, senão segundo a sua imagem, pelo menos segundo os seus próprios desejos. A lenda de Lenine é para a nova Rússia, o que a lenda napoleónica é para a França e o que a lenda do rei Frederico é para a Alemanha. E, assim como houve em tempos pessoas que recusavam acreditar na morte de Napoleão e outras que esperavam a ressurreição do rei Frederico, também existem ainda hoje na Rússia camponeses para os quais o "paisinho Czar" não morreu, mas continua a satisfazer o seu insaciável apetite de homenagens continuamente repetidas. Outros põem a arder eternamente lamparinas sob o seu retracto; para estes, ele é um santo, um redentor, a quem é preciso rezar para que nos socorra. Para os milhões de olhos fixos nestes milhões de retratos, Lenine simboliza o Moisés russo, São Jorge, Ulisses, Hércules, o diabo e o bom deus. O culto de Lenine deu origem a uma nova religião perante a qual os mais ateus dos comunistas dobram o joelho com solicitude - isso simplifica muito a vida, sob todos os pontos de vista. Lenine surge-lhes como o pai da República soviética, o homem que permitiu que a revolução triunfasse, o grande dirigente sem o qual não existiriam. A Revolução russa tornou-se, não somente na Rússia e na lenda popular, mas também para uma larga fracção da intelligentsia marxista de todo o mundo, um acontecimento mundial tão estreitamente ligado ao génio de Lenine que pareceria que sem ele a revolução - e consequentemente, a história do mundo - teria tido um rumo completamente diferente. Contudo, a análise verdadeiramente objectiva da Revolução russa revelará imediatamente a inépcia de uma tal concepção.
"A afirmação segundo a qual a história é feita pelos grandes homens é totalmente desprovida de fundamento no plano teórico". Foi com estas palavras que Lenine fez nascer a lenda que pretende que ele seja o único responsável pelo sucesso da Revolução Russa. Considerava que a Primeira Guerra mundial tinha sido a causa directa da revolução e que tinha determinado a sua altura. Sem esta guerra, disse, "a revolução teria sido sem dúvida adiada várias décadas". Dizer da Revolução russa que ela se desencadeou e se desenvolveu, em grande parte, graças a Lenine, é identificar a revolução com a tomada do poder pelos bolcheviques. O próprio Trotsky disse que todo o mérito do êxito da sublevação de Outubro pertencia a Lenine; que apesar da oposição de quase todos os seus camaradas de partido, tinha ele só tomado a decisão da insurreição. Mas a tomada do poder pelos bolcheviques não dotou a revolução com o espírito de Lenine. Pelo contrário, Lenine adaptou-se tão bem às necessidades da revolução que se pode quase dizer que concluiu a obra dessa classe que ele combateu abertamente(1). Na verdade, muitas vezes se afirmou que a tomada do poder pelos bolcheviques tinha permitido que a revolução democrática-burguesa se transformasse numa revolução socialista proletária. Mas quem poderá quer seriamente que um só acto político tenha podido substituir todo o desenvolvimento histórico; que sete meses - de Fevereiro a Outubro - tenham bastado para criar as bases económicas de uma revolução socialista num país que mal começava a libertar-se das cadeias feudais e absolutistas e a abrir-se à influência do capitalismo moderno?
Até à época da revolução e, em certa medida, ainda hoje, a questão agrária desempenhou um papel decisivo no funcionamento económico e social da Rússia. Dos 174 milhões de habitantes que o país contava antes da guerra, apenas 24 milhões viviam nas cidades. Por cada milhar de trabalhadores remunerados, 719 trabalhavam no sector agrícola. Apesar do papel considerável que desempenhavam na economia do país, os camponeses continuavam na sua grande maioria, a levar uma existência miserável. O Estado, a nobreza e os grandes proprietários de terras exploravam a população sem o menor escrúpulo, com uma brutalidade bem asiática.
Após a abolição da servidão (1861), a falta de terra não deixou de estar no centro da política interna. Foi esta falta que esteve na origem de todas as tentativas de reforma, pois transportava consigo o germen da revolução nascente que era necessário irradiar. A política económica do regime czarista, que decretava sem cessar novos impostos indirectos, apenas agravava a situação dos camponeses. As despesas com o exército, a armada e a máquina governamental atingiam proporções gigantescas. A maior parte do orçamento nacional era desperdiçado em fins não produtivos, o que teve como resultado arruinar totalmente a base económica agrícola.
"A liberdade e a terra" foi inevitavelmente a reivindicação revolucionária dos camponeses. E foi o slogan da série de levantamentos camponeses que viriam a tomar, de 1902 a 1906, uma amplitude particular. Esta agitação, que coincidia com os movimentos operários de greves gerais, não deixou de abalar violentamente o próprio coração do czarismo, de tal modo que este período pôde ser qualificado de ensaio geral da revolução de 1917. O modo como o czarismo reagiu perante estas revoltas foi particularmente bem descrito na expressão de Bogdanovitch, então vice governador de Tambiovsk: "Quanto mais fuzilados houver, menos são os prisioneiros". E um dos oficiais que tinha participado na repressão das insurreições escreveu: "Só havia massacre à nossa volta; tudo ardia; atirava-se, abatia-se, degolava-se". Foi neste mar de sangue e de chamas que nasceu a revolução de 1917.
Apesar destas derrotas, a agitação camponesa tornou-se mais ameaçadora. Conduziu à reforma Stolypina que devia contudo, revelar-se vazia de conteúdo; as promessas não foram mantidas e a questão agrária não deu o menor passo em frente. De facto, estas fracas tentativas de apaziguamento não fizeram mais do que reforçar as reivindicações camponesas. O agravamento da situação dos camponeses durante a guerra, a derrota dos exércitos czaristas na frente, a agitação crescente nas cidades, a política caótica do governo que perdia a cabeça, a incerteza geral que se lhe seguiu para todas as classes da sociedade, conduziram à revolução de Fevereiro, cujo primeiro acto foi pôr bruscamente fim à quente questão agrária. No entanto, esta revolução não foi marcada politicamente pelo movimento camponês, que se limitou a dar-lhe todo o seu apoio. As primeiras declarações do comité central dos conselhos operários e de soldados de São Petersburgo nem se quer fizeram caso da questão agrária. Mas em breve os camponeses atraíram a atenção do novo governo. Em Abril e Maio de 1917, as massas camponesas, desiludidas e cansadas de esperar, começaram a apropriar-se das terras. Receosos de perderem a sua parte na nova distribuição, os soldados das primeiras linhas abandonaram as trincheiras e regressaram rapidamente às suas aldeias. Mas conservaram as suas armas e o governo não se pôde opor à sua deserção. Os apelos ao sentimento nacional e ao carácter sagrado dos interesses russos não tiveram qualquer força perante a necessidade premente, para as massas, de providenciar finalmente às suas necessidades económicas. E estas necessidades só podiam ser satisfeitas pela paz e pela terra. Diz-se que, na época, alguns camponeses a quem se pedira que ficassem na frente para impedir que os alemães ocupassem Moscovo, tinham ficado muito admirados e tinham respondido aos emissários do governo: "O que é que isso nos interessa? Somos do governo de Tamboff".
Lenine e os bolcheviques não inventaram o slogan vitorioso da "terra aos camponeses"; não fizeram mais que aceitar a verdadeira revolução camponesa que se desenrolava independentemente deles. Aproveitando as hesitações do regime de Kérensky, que esperava poder resolver a questão agrária através das negociações pacíficas, os bolcheviques atraíram as simpatias dos camponeses e puderam assim derrubar o governo e tomar o poder. Mas alcançaram esta vitória apenas como agentes da vontade dos camponeses - sancionando as suas apropriações de terras - e é só graças ao seu apoio que puderam manter-se no poder.
O slogan "a terra aos camponeses" não tem nada a ver com os princípios do comunismo. A parcialização dos grandes domínios numa multitude de pequenas empresas agrícolas independentes era precisamente o contrário do socialismo e só se poderia justificar como uma táctica necessária. As alterações que ulteriormente se operam na política camponesa de Lenine e dos bolcheviques foram impotentes para modificar as consequências inevitáveis deste oportunismo. Apesar dos esforços de colectivização que, até aos nossos dias, se limitaram sobretudo ao aspecto técnico dos processos de produção, a agricultura russa é ainda hoje essencialmente determinada pelos interesses económicos privados. Assim como a indústria, ela deve necessariamente orientar-se para uma economia de capitalismo de Estado. Embora o capitalismo de Estado vise transformar a produção rural numa massa de assalariados agrícolas, é bastante improvável que este objectivo seja atingido quando se pensa nas incidências revolucionárias de tal aventura. A actual colectivização não pode ser considerada como a realização do socialismo. Este é o ponto de vista de observadores estrangeiros como Maurice Hindus que pensa, por seu lado, que "mesmo que os Sovietes se viessem a desmoronar, a agricultura russa continuaria colectivizada e o seu controlo talvez estivesse mais entre as mãos dos camponeses que do governo". Todavia, mesmo que a política agrícola bolchevique fosse bem conduzida, mesmo que o capitalismo de Estado se estendesse a todos os ramos da economia nacional, a situação dos operários em nada seria modificada. De resto, um tal regime não poderia ser considerado como uma fase de transição para o verdadeiro socialismo, pois que os elementos da população que hoje são favorecidos pelo capitalismo de Estado defenderiam os seus privilégios opondo-se a qualquer mudança, como o fizeram os proprietários de terras durante a revolução de 1917.
Os operários, que então não constituíam mais que uma pequena parte da população, não tiveram influência real sobre o carácter de revolução russa. Quanto aos elementos burgueses que tinham combatido o czarismo, depressa iriam recuar perante a natureza das suas próprias tarefas. Eles não podiam aderir à solução revolucionária da questão agrária, pois uma expropriação geral das terras podia facilmente desencadear uma expropriação das empresas industriais. Não foram seguidos nem pelos operários nem pelos camponeses e o destino da burguesia foi decidido pela aliança temporária entre estes dois grupos. Foram os operários e não a burguesia que concluíram a revolução burguesa; o lugar dos capitalistas foi tomado de assalto pelo aparelho estatal dos bolcheviques, sob o slogan leninista: "Se é necessário o capitalismo, façamo-lo nós mesmos". Na verdade, os operários das cidades derrubaram o capitalismo mas depressa encontraram um novo senhor: o governo bolchevique. Nas cidades industriais, a luta dos trabalhadores prosseguiu em nome das reivindicações socialistas e independentemente da revolução camponesa em curso (pelo menos na aparência, porque esta iria determinar a luta operária de modo decisivo). As reivindicações revolucionárias dos operários não puderam ser satisfeitas. Claro que os operários podiam, com a ajuda dos camponeses, aceder ao poder estatal, mas este novo Estado tomou rapidamente uma posição que se opunha directamente aos interesses dos trabalhadores. Oposição que assumiu um tal aspecto, que se pode hoje falar de "czarismo vermelho": supressão das greves, deportações, execuções massivas, e como consequência, nascimento de novas organizações ilegais que travam uma luta comunista contra o falso socialismo actual. O facto de hoje em dia se falar em estender a democracia na Rússia, e em introduzir uma espécie de regime parlamentar, ao mesmo tempo que a resolução do último congresso dos Sovietes sobre o desmantelamento da ditadura, não são mais que puras manobras tácticas destinadas a atenuar a violência com que o governo tem ultimamente reprimido a oposição. É preciso deixarmo-nos de tomar estas promessas a sério; não são mais que a excrescência da prática leninista que nunca hesitou em fazer duas coisas contraditórias ao mesmo tempo quando isso se revelasse necessário para a sua estabilidade e segurança. Este movimento em zig-zag da política leninista explica-se pela necessidade do governo em se adaptar constantemente às variações nas relações de força entre as classes, de modo a manter-se sempre como senhor da situação. Assim, o que ontem foi rejeitado é hoje aceite, e vice-versa; a falta de princípios foi erigida em princípio, e o partido bolchevique só se preocupa com o exercício do poder a qualquer preço.
Contudo, o que aqui nos interessa é tão só demonstrar claramente como a revolução russa não foi obra nem de Lenine nem dos bolcheviques, mas da revolta camponesa. E o próprio Zinoviev, ainda no poder na época e do lado de Lenine, observava, a quando do XI congresso do partido bolchevique (Março - Abril de 1922): "Não foi a vanguarda proletária que se bateu ao nosso lado, que decidiu da nossa vitória, mas sim o apoio que nos votaram os soldados, porque queríamos a paz. E o exército eram os camponeses. Se não tivéssemos sido apoiados por milhões de soldados camponeses, nunca teríamos vencido a burguesia". Como os camponeses se preocupavam mais com a terra do que com o modo como era gerido o país, os bolcheviques tiveram todo o vagar para conquistar o poder. Os camponeses deixaram de boa vontade Kremlin para os bolcheviques, com a única condição destes não se entremeterem na sua luta contra os grandes proprietários de terras.
A acção de Lenine foi mais determinante nas cidades. Pelo contrário, foi arrastado, sem poder oferecer resistência, na esteira dos operários que ultrapassavam em muito os bolcheviques nas suas reivindicações e na sua prática. Lenine não conduziu a revolução, foi a revolução que o conduziu. Se bem que até ao levantamento de Outubro Lenine tenha restringido as suas primeiras exigências ambiciosas, limitando-se a reclamar o controlo da produção, e se bem que tenha desejado parar, uma vez consumada a socialização dos bancos e dos meios de transportes, sem chegar a abolir totalmente a propriedade privada, os operários deviam ir mais além e expropriar todas as empresas. Não deixa de ter interesse notar que o primeiro decreto do governo bolchevique foi dirigido contra as expropriações selvagens das fábricas, praticadas pelos conselhos operários. Nessa época, os sovietes eram mais poderosos que o aparelho do partido e Lenine foi forçado a decretar a nacionalização de todas as empresas industriais. E foi apenas sob a pressão dos operários que os bolcheviques consentiram em alterar os seus planos. Pouco a pouco, o poder estatal iria consolidar-se em detrimento dos sovietes que actualmente, não têm mais que um papel decorativo.
Durante os primeiros anos da revolução, e até à introdução da Nep em 1921, houve, no entanto, algumas experiências realmente comunistas na Rússia. Elas foram, não obra de Lenine, mas dessas forças que fizeram dele um verdadeiro camaleão político, tão depressa reaccionário como revolucionário. Iria assim fazer figura de extremista durante as novas sublevações camponesas contra os bolcheviques, ao conceder uma grande audiência aos operários e aos camponeses pobres que tinham sido lesados pela primeira distribuição de terras. Esta política foi um fracasso: os camponeses pobres recusaram apoiar os bolcheviques. Lenine voltou-se então para os camponeses médios, não hesitando em favorecer os elementos capitalistas enquanto que os seus antigos aliados eram abatidos a tiro, como aconteceu em Cronstadt.
O poder, nada mais que o poder; a isso se reduz, afinal, toda a sabedoria política de Lenine. O facto do caminho escolhido e dos meios utilizados para atingir esse fim determinarem, por seu lado, o modo como esse poder era aplicado, não o preocupava absolutamente nada. Para ele o socialismo, em última instância, não era mais que uma espécie de capitalismo de Estado a partir do "modelo dos correios alemães"(2). E devia ultrapassar este capitalismo postal no seu lançamento, pois que, de facto, nada mais havia a ultrapassar. Tratava-se unicamente de saber quem beneficiaria com o capitalismo de Estado, e neste domínio ninguém soube igualar Lenine. George Bernard Shaw, de regresso da Rússia, não hesitava em declarar, numa conferência na Sociedade Fabiana de Londres, que "o comunismo russo não é senão a aplicação prática do programa fabiano que defendemos à quarenta anos".
E, no entanto, ninguém até hoje pensou que os Fabianos constituíssem uma força revolucionária à escala mundial. Enquanto que Lenine é antes de mais, aclamado como um revolucionário, não obstante o facto do actual governo russo, encarregado de administrar o seu "domínio", publicar vigorosos desmentidos cada vez que a imprensa fala de brindes feitos pelos russos à revolução mundial - como aconteceu recentemente a propósito de um artigo do New York Times sobre o Congresso dos sovietes russos. A lenda que pretende que Lenine simbolize a revolução mundial estabeleceu-se a partir da política internacional consequente por ele seguida durante a Primeira Guerra Mundial. Nessa época, Lenine não podia conceber que a revolução russa não teria repercussões e que seria abandonada a si mesma. E isto por duas razões: a primeira era que uma tal concepção teria estado em contradição com a situação objectiva que resultava da Primeira Guerra Mundial; a segunda era ele supor que o ataque das nações imperialistas contra os bolcheviques venceria a resistência da Revolução russa se o proletariado da Europa ocidental não fosse em seu socorro. O apelo de Lenine à revolução mundial era um apelo à defesa e à manutenção do poder bolchevique. A prova disso é a sua incoerência sobre a seguinte questão: ao mesmo tempo que reclamava a revolução mundial, reivindicava o "direito de autodeterminação de todos os povos oprimidos" para a sua libertação nacional. Com estes dois slogans esperava enfraquecer as forças de intervenção dos países capitalistas nas questões russas, desviando a sua atenção para os seus próprios territórios e colónias. Os bolcheviques podiam assim respirar fundo e, para prolongarem o mais possível esta trégua, serviram-se da sua Internacional. Esta assumiu uma dupla tarefa: por um lado, submeter os trabalhadores da Europa ocidental e da América às decisões de Moscovo; por outro, reforçar a influência do Kremlin sobre os povos da Ásia oriental. A política internacional reproduzia o percurso da Revolução russa. O objectivo visado era unir os interesses dos operários e dos camponeses à escala mundial e controlá-los através do órgão bolchevique, a Internacional comunista. O poder bolchevique russo seria mantido pelo menos por este meio; e no caso da revolução mundial se propagar realmente, os bolcheviques poderiam dominar o mundo. Se o primeiro objectivo foi coroado de êxito, o mesmo não aconteceu com o segundo. A revolução mundial não pôde progredir como imitação da revolução russa, e as limitações nacionais da vitória na Rússia fizeram necessariamente com que os bolcheviques se mostrassem como uma força contra-revolucionária à escala internacional. A exigência de uma "revolução mundial" transformou-se pois numa teoria da "construção do socialismo num só país". Tal não é uma deturpação do pensamento de Lenine - como o afirma hoje Trotsky - mas sim a consequência directa da pseudo política de revolução mundial que o próprio Lenine seguiu.
Era evidente nessa época, mesmo para numerosos bolcheviques, que se a revolução não fosse para além da Rússia, teria como efeito entravar a revolução mundial. Na sua obra Os problemas económicos da ditadura do proletariado, publicada em 1921 pela Internacional Comunista, Eugène Varga escrevia por exemplo: "É de recear que a Rússia não possa mais ser a força motriz da revolução internacional... Há comunistas que estão cansados de esperar a revolução europeia e que desejam tirar o melhor partido possível do seu isolamento nacional... Com uma Rússia que se desinteressasse pela revolução social dos outros países, as nações capitalistas teriam boa vizinhança. Longe de mim pensar que um tal estrangulamento da Rússia revolucionária seria suficiente para parar o avanço da revolução mundial. Mas a sua evolução abrandaria". Ao mesmo tempo, a acentuação das crises internas na Rússia levaria a grande maioria dos comunistas a pensar assim. De facto, já muito antes, em 1920, Lenine e Trotsky tinham feito o possível para barrar o caminho às forças revolucionárias da Europa. A paz mundial era indispensável para o estabelecimento de um capitalismo de Estado na Rússia, sob os auspícios dos bolcheviques. Não era nada desejável que essa paz fosse perturbada por guerras ou por novas revoluções, porque nesse caso, um país como a Rússia seria necessariamente implicado. É assim que Lenine, através de cisões e de intrigas, decidiu impor aos movimentos operários da Europa ocidental a via neo-reformista que iria conduzir à sua desintegração. Apoiado por Lenine, Trotsky dirigir-se-ia severamente aos insurrectos do centro da Alemanha (1921): "Diremos muito simplesmente aos operários alemães que consideramos a táctica da ofensiva como das mais perigosas, e a sua aplicação prática como o maior crime político". Sempre com a aprovação de Lenine, e a propósito de uma outra situação revolucionária, Trotsky declarava, em 1923, ao correspondente do Manchester Guardian: "Claro que nos interessamos pela vitória das classes trabalhadoras, mas não teríamos de modo algum interesse em ver rebentar uma revolução numa Europa exangue e em ver o proletariado receber apenas ruínas das mãos da burguesia. Por agora, queremos manter a paz". Dez anos mais tarde, a Internacional Comunista não opôs a mínima resistência à tomada do poder por Hitler. Trotsky não tem apenas razão, mas deve também ter perdido a memória - sem dúvida porque perdeu o uniforme - quando descreveu a recusa de Estaline em apoiar os comunistas alemães como uma traição aos princípios do leninismo. Ora este tipo de traição foi constantemente praticado quer por Trotsky, quer por Lenine. Mas não era uma das máximas de Trotsky que o que conta não é o que se faz, mas quem o faz? Pela sua atitude para com o fascismo alemão, Estaline mostrou-se, de facto, como o melhor discípulo de Lenine. Os próprios bolcheviques não teriam hesitado em contrair alianças com a Turquia e a sustentar política e economicamente os governos desse país, mesmo numa época em que os comunistas aí eram severamente reprimidos e, por vezes, mais selvaticamente do que alguma vez o fez Hitler.
Se se tiver em conta que a Internacional Comunista, na medida em que continua a existir, não é nada mais que a repartição de turismo russa, e se se tiver em conta a derrota de todos os movimentos comunistas dirigidos a partir de Moscovo, é bem evidente que a lenda de Lenine, esse revolucionário internacional, está neste momento de tal modo enfraquecida que se pode esperar não Ter mais lugar num futuro próximo. Já hoje os nostálgicos da Internacional Comunista não utilizam mais o conceito de revolução mundial, mas falam antes de "Pátria dos trabalhadores", fórmula que os entusiasma tanto mais que aí não têm que viver como operários. Os que persistem em fazer de Lenine um revolucionário internacional, apenas pretendem, de facto, despertar os velhos sonhos leninistas de domínio do mundo, sonhos que a luz do dia reduziu a poeira.
Nenhuma personagem da história moderna foi tão mal interpretada e tão desfigurada como o foi Lenine. Demonstramos que não se lhe pode atribuir o sucesso da revolução russa, e que a sua teoria e a sua prática não tinham o alcance internacional que muitas vezes se lhes quis dar. Tal como ele, apesar de todas as afirmações em contrário, não alargou nem enriqueceu o marxismo. Na obra de Thomas B. Brameld, A Philosofhical Approach to Communism, recentemente publicada pela universidade de Chicago, o comunismo é ainda definido como "uma síntese das doutrinas de Marx, de Engels e de Lenine". E não é unicamente neste livro, mas em toda a literatura do partido comunista, que Lenine é assim situado. Estaline descreveu o leninismo como "o marxismo do período imperialista". Mas uma tal apreciação só se justifica por uma sobrevalorização sem fundamento de Lenine. Porque Lenine não acrescentou ao marxismo o menor elemento que possa ser qualificado como novo e original. A sua posição filosófica não é outra que o materialismo dialéctico tal como foi desenvolvido por Marx Engels e Plékhanov. E a ele se refere para todo e qualquer problema importante - brandindo-o como critério universal, como arma de última hora. Na sua principal obra filosófica, Marxisme et empirio-criticisme, limitou-se a repetir Engels, opondo as diferentes concepções filosóficas e terminando pela oposição entre materialismo e idealismo. O materialismo afirmando a prioridade da natureza sobre o espírito, o idealismo partindo do ponto de vista inverso, Lenine assumiu como sua esta definição, reforçando-a com elementos emprestados a diversas fontes; não contribuiu com qualquer maior enriquecimento para a dialéctica marxiana e é impossível, no domínio filosófico, falar de uma escola leninista.
No domínio da economia, a obra de Lenine fica muito aquém do que se quis fazer ver. Sem dúvida que os seus escritos económicos são mais marxistas que os dos seus contemporâneos, mas não passam da aplicação brilhante de doutrinas existentes baseadas no marxismo. De resto, Lenine não teve de modo algum a intenção de se erigir como teórico económico original, pois que considerava ter já Marx, dito tudo neste domínio. Convencido de que era impossível ultrapassar Marx, ir-se-ia limitar a provar que os postulados marxistas concordavam com a situação existente. A sua principal obra económica, Le Développement du Capitalisme en Rússia esclarece bem sobre esta questão. Lenine nunca quis ser algo mais do que o discípulo de Marx e só a lenda pode falar de uma teoria do "leninismo".
Lenine pretendia-se acima de tudo um político prático. As suas obras teóricas são quase exclusivamente de natureza polémica. Nelas ataca os inimigos teóricos e outros do marxismo, com o qual se identifica. Para o marxismo, a prática decide da justeza de uma teoria. Na qualidade de prático ao serviço do pensamento de Marx, Lenine prestou talvez um grande serviço ao marxismo. Contudo, toda a prática é, para o marxismo, uma prática social que os indivíduos não podem modificar ou influenciar senão em fraca medida, e sobre a qual nunca podem ter acção decisiva. Não se pode negar que a união da teoria e da prática, do objectivo final que se tem em vista e dos problemas concretos que se põem a cada instante - preocupações constantes de Lenine - não seja um grande sucesso. Mas este sucesso só se pode medir pelo êxito que o acompanha, e este êxito, já o dissemos, foi recusado a Lenine. Não só a sua obra se demonstrou incapaz de fazer avançar o movimento revolucionário mundial, como também não soube estabelecer as condições prévias para a construção de uma verdadeira sociedade socialista na Rússia. Os êxitos que pôde alcançar, longe de o aproximar do seu objectivo, afastaram-no.
A situação que hoje existe na Rússia e a condição dos trabalhadores em todo o mundo deveriam ser suficientes para provar a qualquer observador comunista que a política "leninista" actual é precisamente o contrário da fraseologia que emprega. Esta contradição acabará por destruir a lenda artificial de Lenine e a história poderá, finalmente, remeter Lenine para o seu verdadeiro lugar.
PAULL MATTICK (Dezembro de 1935)
In. I.I.C. vol. II n.º 1 Dezembro de 1935
(1) A burguesia. (N.T.F.)
(2) L’État et la révolution, Éd. De Moscou p.66 (N.T.F.)