MANIQUEISMO E FETICHISMO
I
Aqui se descreve o Fetichismo
Sistema dualista de miragens vãs
Sem, esperança, futuro, ideias sãs
Pantomina de trevas e de abismo
Presos deste iníquo simbolismo
Cruzes adoramos, dinheiro, e talismãs
Presas dum novo tipo de xamãs
Ditos do progresso e modernismo
Por tal ao peito pendurados
Trazemos tais fetiches e cuidamos
Que estão da sorte impregnados
Enquanto cada dia nos tornamos
Numa leva de bobos e castrados
Ante os fetiches ocos que criamos
II
E presos dessa «abstracção real»
Pedras adorando, madeiras e metais
Reduzidos a fetiches como os mais
Adoramos o Éden episcopal
A besta nos ensine esse animal
Que retouça no campo os ervaçais
Liberta de fetiches racionais…
A pensar de forma natural
O tempo em que vivemos não suporta
Mais tanta missanga ultrapassada
Tanta ilusão caída e morta
Somos tudo e não somos nada
Deixem entrar a luz, abram a porta
Para que a vida seja iluminada
III
Enquanto o fetichismo vai urdindo
E apertando sua malha traiçoeira
Abramos à vida os olhos da cegueira
Façamos sorrir quem vai carpindo
Um campo de flores, flores abrindo
O terno borbulhar duma ribeira
Silvos de rouxinol num ramo de figueira
É vida que canta e vai fugindo
Possam os poetas acordados
Cantar esse mundo ameno e lindo
Com timbres sonoros e ritmados
Como os rouxinóis que vão ouvindo…
Que os cantos dum sonho são sonhados
E quem sonha não canta… está dormindo!
IV
A todo o fetiche que o mundo encerra
A Humanidade curvou o seu joelho
À bosta rolada do escaravelho
À víbora que se arrasta na aridez da terra
A toda a besta que nas selvas berra
À palavra vã de todo o evangelho
Às sereias, aos dragões, um trapo velho
Ao crime, à morte, à rapina, à guerra
A tudo o Homem adorou curvado
Dando ao Sol e à Lua a primazia
Num gesto de tartufo atemorizado
Pintou os astros de ouro e de magia
Humilhou-se ao vento que passa alvoroçado
E à pedra que o mar rola indiferente e fria
V
Fez deuses aos milhões por todo o Globo
Deuses do Bem, deuses da Maldição
Fez a Luz em trevas e Escuridão
Curvou-se à água, e curvou-se ao fogo
Ouviu impassível todo o demagogo
Que espalhou as leis da adoração
Deixou que Maniqueu com a sua divisão
O bipartisse em Homem e Lobo
Aceitou toda a fantasia e toda a ficção
A Pluto se curvou ante a Riqueza
Porfiou viver sem os pés no chão
Ao contrário do que manda a Natureza
Prendeu-se em torno da aberração
E caminha agora sem uma luz acesa
VI
Mas se o tempo passou nem tudo passa
O Homem vai seguindo o seu caminho
Com o fetiche misérrimo e mesquinho
Agarrado a si como qualquer carraça
Todos os dias repete a mesma farsa
O mesmo estilo utópico e daninho
Adorando o santo dinheirinho
Bebendo sempre o fel da mesma taça
E mais nada há ao fim desta jornada
Que Céus e Infernos, notas e dobrões
Nenhuma aurora, nenhuma madrugada
Caminhamos na vida aos trambolhões
E se corrermos sempre atrás do nada
Acharemos o nada das nossas ilusões
VII
Onde está o Trabalho esse fantasma ingrato
Essa riqueza bárbara que dantes tivemos?
Morreu já como nós morreremos
Depois de nos vender ao desbarato
E o nosso valor, esse mito caricato
De que nunca na vida nos esquecemos
Para quê os braços que inda temos?
Se melhor que nós sabe viver o rato!
Porquê, tentar colar os estilhaços
Dum mundo que só sobreviveu
Enquanto se prendeu aos nossos braços?
E gritar porquê, por quem morreu
Ou rebuscar o quê entre pedaços
Duma vida que um sonho entreteceu?
VIII
Um pedaço de papel ou de metal
Eis o fetiche que rege o Mundo inteiro
Ontem Diabo e Deus, hoje Dinheiro
Mudar-lhe a gente o nome o que é que vale?
Trocarmos um Mal por outro Mal
Um carcereiro por outro carcereiro
Será sempre essa ilusão nosso coveiro
Se não tornarmos a vida racional!
Aqui onde a razão razão não tem
Caminhamos de pernas para o ar
Durante gerações sei muito bem
Mas ainda é tempo de mudar
Façamos nova estrada mais além
Por esta não podemos caminhar!
IX
Assim encarcerados torpemente
Eis a nossa tragédia já á vista
Onde impossível é que alguém resista
A cárcere tão danoso e tão potente
Não há futuro algum, nenhum presente
É de sombras vãs nossa conquista
O mundo se esvai à nossa vista
Empalidece a luz à nossa frente
Nesta «jaula de ferro» encarcerados
Como feros animais permanecemos
Ó! Mórbidos seres alienados!
E nesta mesma jaula morreremos
Se com engenho e força associados
Não quebrarmos a jaula onde vivemos!
Leonel Santos
Fevereiro,2012