Leonel Santos - MANIQUEISMO E FETICHISMO


MANIQUEISMO E FETICHISMO

I 

Aqui se descreve o Fetichismo
Sistema dualista de miragens vãs
Sem, esperança, futuro, ideias sãs
Pantomina de trevas e de abismo

Presos deste iníquo simbolismo
Cruzes adoramos, dinheiro, e talismãs
Presas dum novo tipo de xamãs
Ditos do progresso e modernismo

Por tal ao peito pendurados
Trazemos tais fetiches e cuidamos
Que estão da sorte impregnados

Enquanto cada dia nos tornamos
Numa leva de bobos e castrados
Ante os fetiches ocos que criamos

II
E presos dessa «abstracção real»
Pedras adorando,  madeiras e metais
Reduzidos a fetiches como os mais
Adoramos o Éden episcopal

A besta nos ensine esse animal
Que retouça no campo os ervaçais
Liberta de fetiches racionais…
A pensar de forma natural

O tempo em que vivemos não suporta
Mais tanta missanga ultrapassada
Tanta ilusão caída e morta

Somos tudo e não somos nada
Deixem entrar a luz, abram a porta
Para que a vida seja iluminada


III

Enquanto o fetichismo vai urdindo
 E apertando sua malha traiçoeira
Abramos à vida os olhos da cegueira
Façamos sorrir quem vai carpindo

Um campo de flores, flores abrindo
O terno borbulhar duma ribeira
Silvos de rouxinol num ramo de figueira
É vida que canta e vai fugindo

Possam os poetas acordados
Cantar esse mundo ameno e lindo
Com timbres sonoros e ritmados

Como os rouxinóis que vão ouvindo…
Que os cantos dum sonho são sonhados
E quem sonha não canta… está dormindo!

IV
A todo o fetiche que o mundo encerra
A Humanidade curvou o seu joelho
À bosta rolada do escaravelho
À víbora que se arrasta na aridez da terra

A toda a besta que nas selvas berra
À palavra vã de todo o evangelho
Às sereias, aos dragões, um trapo velho
Ao crime, à morte, à rapina, à guerra

A tudo o Homem adorou curvado
Dando ao Sol e à Lua a primazia
Num gesto de tartufo atemorizado

Pintou os astros de ouro e de magia
Humilhou-se ao vento que passa alvoroçado
E à pedra que o mar rola indiferente e fria

V

Fez deuses aos milhões por todo o Globo
Deuses do Bem, deuses da  Maldição
Fez a Luz em trevas e Escuridão
Curvou-se à água, e curvou-se ao fogo

Ouviu impassível todo o demagogo
Que espalhou as leis da adoração
Deixou que Maniqueu com a sua divisão
 O bipartisse em Homem e Lobo

Aceitou toda a fantasia e toda a ficção
A Pluto se curvou ante a Riqueza
Porfiou viver sem os pés no chão

Ao contrário do que manda a Natureza
Prendeu-se em torno da aberração
E caminha agora sem uma luz acesa

VI
Mas se o tempo passou nem tudo passa
O Homem vai seguindo o seu caminho
Com o fetiche misérrimo e mesquinho
Agarrado a si como qualquer carraça

Todos os dias repete a mesma farsa
O mesmo estilo utópico e daninho
Adorando o santo dinheirinho
Bebendo sempre o fel da mesma taça

E mais nada há ao fim desta jornada
Que Céus e Infernos, notas e dobrões
Nenhuma aurora, nenhuma madrugada

Caminhamos na vida aos trambolhões
E se corrermos sempre atrás do nada
Acharemos o nada das nossas ilusões

VII

Onde está o Trabalho esse fantasma ingrato
Essa riqueza bárbara que dantes tivemos?
Morreu já como nós morreremos
Depois de nos vender ao desbarato

E o nosso valor, esse mito caricato
De que nunca na vida nos esquecemos
Para quê os braços que inda temos?
Se melhor que nós sabe viver o rato!

Porquê, tentar colar os estilhaços
Dum mundo que só sobreviveu
Enquanto se prendeu aos nossos braços?

E gritar porquê, por quem morreu
Ou rebuscar o quê entre pedaços
Duma vida que um sonho entreteceu?


VIII

Um pedaço de papel ou de metal
Eis o fetiche que rege o Mundo inteiro
Ontem Diabo e Deus, hoje Dinheiro
Mudar-lhe a gente o nome o que é que vale?

Trocarmos um Mal por outro Mal
Um carcereiro por outro carcereiro
Será sempre essa ilusão nosso coveiro
Se não tornarmos a vida racional!

Aqui onde a razão razão não tem
Caminhamos de pernas para o ar
Durante gerações sei muito bem

Mas ainda é tempo de mudar
Façamos nova estrada mais além
Por esta não podemos caminhar!

IX

Assim encarcerados torpemente
Eis a nossa tragédia já á vista
Onde impossível é que alguém resista
A cárcere tão danoso e tão potente

Não há futuro algum, nenhum presente
É de sombras vãs nossa conquista
O mundo se esvai à nossa vista
Empalidece a luz à nossa frente

Nesta «jaula de ferro» encarcerados
Como feros animais permanecemos
Ó! Mórbidos seres alienados!

E nesta mesma jaula morreremos
Se com engenho e força associados
Não quebrarmos a jaula onde vivemos!

Leonel Santos
Fevereiro,2012